6:53Autoridade em frangalhos

por Ivan Schmidt

As lições da filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt (1906-1975), considerada uma das grandes pensadoras do século XX, são sempre oportunas quando se trata de buscar algum resquício de compreensão para as crises cíclicas que se abatem sobre o mundo (ou seria submundo?) da política em qualquer quadrante do globo habitado, supostamente, por seres aquinhoados pelo dom da inteligência.

A contribuição de Hannah Arendt para os que pretendem entender e/ou refletir sobre o estado das artes numa contemporaneidade profundamente marcada por guerras, transformações sociais, surgimento e queda de doutrinas políticas e explosões radicais de nacionalismos e religiosidade, decorre exatamente do fato de ter acompanhado com vivo interesse acadêmico a formação de regimes totalitários como o nazismo e o comunismo, escolhendo o lado da defesa dos direitos individuais e da família contra o pensamento massificado.

Educada nas universidades de Marburgo, Heildelberg e Friburgo, tornou-se discípula e seguidora da filosofia de Martin Heidegger, com quem teve um relacionamento amoroso. Mesmo de família hebraica, Hannah não professou a religião tradicional de seu povo, embora ao longo da vida tenha mantido a crença em Deus de maneira livre e não convencional.

Migrando para os Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial obteve a cidadania e desenvolveu admirável carreira universitária, notabilizando-se como autora de obras monumentais como A origem do totalitarismo, A condição humana e Eichman em Jerusalém.

Uma de suas obras mais brilhantes – Entre o passado e o futuro – a primeira edição foi lançada pela Viking Press em 1954 (o volume saiu aqui pela Perspectiva em 1979), foi referida por seu principal divulgador no Brasil, seu ex-aluno e ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, como “o livro onde pulsa, simultaneamente, todo o conjunto de inquietações a partir do qual Hannah Arendt ilumina a reflexão política do século XX”.

Num vasto painel, entre tantos outros pontos a autora discute a pertinente questão da autoridade sob o argumento de que “somos tentados e autorizados a levantar essa questão por ter a autoridade desaparecido do mundo moderno”.

A crise de autoridade, segundo Hannah se manifesta desde o começo do século passado, sendo essencialmente política em sua origem e natureza: “O ascenso de movimentos políticos com o intento de substituir o sistema partidário, e o desenvolvimento de uma nova forma totalitária de governo, tiveram lugar contra o pano de fundo de uma quebra mais ou menos geral e mais ou menos dramática de todas as autoridades tradicionais. Em parte alguma essa quebra foi resultado direto dos próprios regimes ou movimentos; antes, era como se o totalitarismo, tanto na forma de movimentos como de regimes, fosse o mais apto a tirar proveito da atmosfera política e social geral em que o sistema de partidos perdera seu prestígio e a autoridade do governo não mais era reconhecida”, escreveu.

A conclusão da pensadora é de uma plausibilidade indubitável: “Tanto prática como teoricamente, não estamos mais em posição de saber o que a autoridade realmente é”.

A clareza objetiva com que Hannah Arendt construiu o arcabouço de sustentação de sua forma de pensar fenômenos políticos e sociais do século XX chega aos nossos dias e, com o máximo rigor de sua profundidade analítica, em particular a um país chamado Brasil, no qual grassa uma crise de autoridade que envergonha o mais simplório dos cidadãos.

A mais elevada autoridade do sistema de governo – a presidente – tantos foram os equívocos cometidos que perdeu a capacidade de governar, apresentando-se hoje como uma figura patética e desarticulada, ao que parece sem interlocutores confiáveis.

Como num fim de feira dá-se ao desplante de nomear para ministério importante como o Turismo, um exibicionista deslumbrado com seus quinze minutos de fama, que inaugurou a passagem pelo cargo liberando o gabinete ministerial para a inédita exibição das abundâncias (opa!) carnais de sua própria mulher.

Abúlica a quaisquer deveres institucionais da presidência da República, longe de dedicar seu tempo à gestão profícua dos problemas nacionais, a presidente insiste na repetição de argumentos que não convencem sequer a Velhinha de Taubaté, na tentativa de se defender do impeachment.

Enquanto isso os serviços públicos essenciais – saúde, educação e segurança – oferecem um espetáculo degradante de penúria, descaso e abandono à própria sorte, para não citar os gargalos insolúveis da inflação, produção e consumo em baixa, desemprego e infraestrutura deficitária, que colocam o país de cócoras diante da perspectiva do caos.

A crise de autoridade se espraia nas pessoas do vice-presidente, que também é repudiado pela opinião pública e poderá sofrer infortúnio semelhante ao da ainda titular da presidência (o pedido de impeachment); do ex-presidente que tudo fez para soldar-se com a prerrogativa de foro e assumir o poder de fato; e, de quebra, dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado da República, também integrantes da interminável lista da Lava Jato. Não bastassem as dezenas de deputados e senadores também citados nesse nefando rol de réprobos.

Mesmo sendo agredido a cada discurso concebido pela novilíngua e sua interpretação peculiar da Constituição, o Supremo Tribunal Federal prossegue na missão de fazer respeitar as leis. No entanto, cada vez que a presidente se refere ao golpe armado contra sua autoridade constitucional (“eles querem sentar na minha cadeira sem voto”), além do desprezo à verdade a dignidade institucional da suprema corte é vilipendiada de forma gratuita.

Além dessa atmosfera fantasmagórica há um risco palpável sobre a paz social, detectado a seu tempo pela filósofa: “Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou”.

Nesse ambiente convulsionado pela frustrante atuação dos principais agentes da política brasileira toda a precaução é necessária diante do espaço concedido aos arreganhos de setores travestidos de movimentos sociais e sindicais alinhados pelo vínculo ideológico, quando não meramente oportunista, ao governo central.

No livro A condição humana (Forense Universitária, RJ, 1981), vale lembrar, o legado filosófico de Hannah Arendt, ela atingiu a plenitude do pensar político ao escrever que “a ascensão e a decadência de civilizações, o declínio e o desaparecimento de impérios poderosos e de grandes culturas sem o concurso de catástrofes externas – e, na maioria das vezes essas ‘causas’ externas são precedidas por uma degenerescência interna que é um convite ao desastre – devem a esta peculiaridade da esfera pública que, pelo fato de decorrer, em última análise da ação e do discurso, jamais perde inteiramente o seu caráter de potencialidade”.

Hannah sublinhou que “o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência, como os instrumentos da violência”, chegando mais uma vez à quintessência da erudição: “O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades”.

O absurdo confronto com os oponentes apregoado de modo irresponsável por líderes virtuais de movimentos ditos sociais remove a máscara que encobre a face tenebrosa do vácuo de autoridade.

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5 ideias sobre “Autoridade em frangalhos

  1. Sergio Silvestre

    Esse texto parece o voto do Gilmar Mendes no Supremo,leva quase cinco horas falando para a planície para depois dar seu voto por partes,onde 99,9% da população não entendeu nada do que ele disse.
    Sou partidario do RITO SUMARIO e textos curtos resumindo em poucas palavras e pouco bla-bla-bla.

  2. leandro

    As verdades sempre causam perplexidade a quem é afetado, no caso os holofotes da exibição estão claros. Nada há para ser entendido daquilo que é inexplicável. fato mais marcante e de fácil entendimento fica então com a bunda da mulher do ministro , só.

  3. Parreiras Rodrigues

    Mais um atestado de analfabeto funcional entregue a Sérgio Silvestre. Repetente contumaz, se vale do novo método cfriado pela Pátria Educadora: Não repetir alunos burros, faltosos. Um meio excuso para dizer ao mundo que ,,, deixa prá lá.

  4. TOLEDO

    Silvestre, o Leandro foi a NY junto com o BIG MORO, O ZORRO DOS CURITIBOCAS. Ele levou mertiolate e algodão. Adivinhe o que ele foi fazer junto ?

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