7:32A VIDA POR DELICADEZA

por José Maria Correia

“Perdi minha vida por delicadeza”, disse o poeta Rimbaud referindo-se às vezes em que deixou de agir com a contundência que gostaria.

De fato há que se perder a delicadeza em certas ocasiões, mas há outras em que esta é providencial.

Lembro de uma.

Em 1976 em chefiava o COPE, o Centro de Operações da Polícia Civil, o grupo de elite da época.

Cumprindo uma missão, fui para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, região de bandidos naqueles tempos, em busca da captura de um dos mais perigosos assaltantes do país: Orlandão, um negro muito forte, um metro e noventa, exímio atirador e  fugitivo da Justiça condenado a mais de cem anos de prisão por roubos e homicídios.

Fizemos um cerco em uma casa de um subúrbio popular. Eu estava acompanhado de meus homens de confiança, os detetives Pegorini, Maciste, Rodrigues e o novato apelidado de Leite Ninho pela juventude e cabelos claros.

Lá pelas 17 horas entramos simultaneamente pelas duas portas, a da sala e a da cozinha, com as armas engatilhadas esperando reação.

Na casa, entretanto, estavam somente uma mulher e duas adolescentes, a família de Orlandão, todos negros como ele.

O bandido havia sido avisado por um olheiro da nossa chegada no bairro e fugira momentos antes.

Determinei com firmeza que a casa fosse toda revistada. Porém, com educação, mandei que as três mulheres aguardassem no quarto, vigiadas pelo Leite Ninho, enquanto fazíamos as buscas.

Antes de irmos embora, sem nada achar, o Rodrigues, muito esperto, cismou com o telhado e lá subindo foi retirando as telhas. Embaixo de cada uma havia um maço de cédulas de cruzeiros, a moeda da época.

Acabamos encontrando algo equivalente a uns três milhões de reais, que levamos para a Delegacia e, depois, para o cofre de um banco.

A família que nada tinha a ver com as ações foi liberada na própria casa.

Meses depois, ainda na busca do Orlandão, que vinha assaltando bancos em todo o Paraná,  acabamos por prendê-lo em outra missão, desta vez no Norte do Paraná , depois de um intenso tiroteio.

Na sede do COPE eu presidi o flagrante e as formalidades. Durante o interrogatório o Orlandão me disse o seguinte: “Sabe doutor eu não o matei porque não quis”.

Fiquei intrigado e pedi a ele que esclarecesse.

Ele então me disse – “Naquela tarde, quando vocês invadiram a minha casa, eu já tinha saído e estava de tocaia na janela da casa ao lado com um fuzil AK 47 apontado para o peito – e ali permaneci até você irem embora”.

Perguntei por que ele não atirou se nos tinha na mira.

Me olhando nos olhos – e com frieza, ele respondeu: “Porque o senhor doutor tratou minha família com respeito e polícia normalmente não respeita família de bandido – ainda mais sendo negros.”

Ouvi aquela declaração com espanto enquanto lembrava quantos colegas e bons amigos eu havia perdido em situações semelhantes, fuzilados impiedosamente por bandidos.

Pensei naquele átimo também na minha própria família e nas minhas duas filhas, também adolescentes como as dele, mas vivendo em uma situação mais privilegiada.

Com humildade de quem reconhece um favor de bandido, estendi minha mão em agradecimento.  Afinal, Orlandão já tinha uma centena de anos para cumprir e para ele uma morte a mais ou a menos não faria diferença naquela vida errada e sem expectativa que não fossem fugas e enfrentamentos, violência e mais violência até que em uma curva do destino a morte o emboscasse também.

Depois disso ele foi removido para a penitenciária onde tentaria novas fugas para voltar ao seu caminho de bandido.

Aquele dia para mim foi uma lição de vida – que recordo mais de três décadas depois.

Se eu tivesse agido com truculência e covardia, humilhando aquelas pobres mulheres também vítimas e discriminadas racialmente e pela condição social, não estaria aqui para contar a história.

Meus sangue teria sido derramado na Rua das Rosas, Jardim Jockey Clube, em Campo Grande.

Fui, entretanto, salvo por delicadeza.

Obrigação é claro, mas nem sempre presente, nem sempre providencial.

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8 ideias sobre “A VIDA POR DELICADEZA

  1. Anonimo

    grande verdade, vivi no mato grosso grande parte da minha vida, e lá a lei sempre foi essa, polícia que age assim, com desrespeito e batesse em alguem, mandavam matar, nem que demorasse vários anos para fazer o serviço. O policial que tem medo, o guardinha municipal que em regra acha que é polícia e falta com educação com as pessoas e o policial civil que não anda uma quadra sem olhar para os lados, todos eles devem e muito, bateram em um pobre coitado, desacataram e foram grosseiros com alguem, isto se não tiverem feito algo pior

  2. Anonimo

    Muito bonita e história, é comovente na verdade, acredito que seja verdadeira, e mostra como um simples gesto, uma simples palavra podem mudar a vida de uma pessoa para todo o sempre

  3. swissblue

    Gosto de ler – a maneira de escrever nos prende da primeira palavra à ultima. Ele tem livros publicados? aqui tem um potencial cliente. obrigado por compartilhar.

  4. ADRIANE

    Texto muito bacana, nos mostra o lado humano, os grandes perigos e os conflitos aos quais estão sujeitos os policiais. Nestes dias em que tantos policiais foram abatidos pelo crime organizado e em que os demais tem suas vidas e famílias ameaçadas, justamente por exercerem a função de defesa da sociedade, o texto faz uma justa homenagem a eles.

  5. antonio carlos

    Viu como é bom ser educado, tratar as pessoas com respeito, se tivesse sido grosso, não estaria nos contando esta história. Desaprovo a violência, ela nunca se justifica. E respeito é bom e todo mundo gosta. Será que o exemplo do delegado não serviria de exemplo para os nossos policiais, agentes de trânsito e guardas municipais? Com o delegado funcionou. ACarlos

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