8:11A sombra do terror

Por Ivan Schmidt

Uma assombração ronda o cenário da política norte-americana desde o último final de semana, quando a cidade universitária de Charlottesville (Vírginia) foi palco de violenta manifestação de ultradireitistas tratados pela imprensa como supremacistas brancos (a primeira vez que me deparo com a palavra), fato que culminou com a morte de uma pessoa e muitos feridos.

A manifestação foi marcada para a referida cidade pela denominada “alt-right” ou direita alternativa, obviamente para fugir à conotação racista e xenófoba que esses movimentos fanáticos logo absorvem, a fim de protestar contra a decisão tomada pela administração municipal de remover uma estátua do general Robert Lee, o principal chefe militar da antiga confederação escravista derrotada pelo Norte na Guerra da Secessão.

Um dos realizadores da manifestação, o supremacista branco Richard Spencer, um americano médio que não faz a menor questão de esconder sua submissão mental ao neonazismo, ao que parece pouco impressionado com a morte de uma pessoa e dos ferimentos causados a tantas outras, pelo fanático que dirigiu o carro em alta velocidade contra pacifistas, afirmou que a falange vingativa certamente voltará a Charlottesville.

“Não podemos permitir que funcionários corruptos suprimam a liberdade de expressão”, disse em entrevista, na condição de pai do conceito da direita alternativa que defende com unhas e dentes a herança branca europeia.

A violência explodiu quando a polícia retirou Spencer e seus seguidores das proximidades da estátua do general Lee, pois a concentração havia sido considerada ilegal pelas autoridades municipais.

A polícia foi incapaz de conter os manifestantes da direita racista e dos grupos afro-americanos e antifascistas que lá estavam para protestar contra a manifestação, sendo o confronto físico entre os grupos inevitável.

Foi nesse contexto que o radical Alex Fields, de 20 anos, que segundo a imprensa viajara cerca de quatro mil quilômetros para participar da manifestação, atropelou um grupo supostamente da esquerda, matando uma jovem e ferindo quase duas dezenas de pessoas.

As imagens de televisão, fotos de jornais e reportagens, mostram com clareza a participação de neonazistas e da Ku Klux Klan, vendo-se pessoas armadas de rifles – a lei de posse de armas da Virgínia permite – e muitas outras carregando porretes e protegidas por escudos.

Os supremacistas brancos já haviam participado em maio passado, nessa mesma cidade, de um desfile com tochas de fogo evocando os tempos de maior atividade da KKK, a assombração que passou a assustar a parte da população formada por negros, imigrantes, homossexuais e judeus, principalmente.

A sequência de notícias após a manifestação de sábado e domingo últimos também mostra a reação do presidente Donald Trump em relação ao fato, sendo o seu pronunciamento mais forte veiculado com dois dias de atraso, sob intensa pressão social e política, ao reunir no mesmo balaio de “repugnantes” a escumalha moral de supremacistas brancos, neonazistas e a Ku Klux Klan.

Em artigo publicado pelo Washington Post e traduzido pelo Estadão de terça-feira (15), a analista Jennifer Rubin comentou que “Trump se arrastou ao pódio para fazer um pronunciamento condenando os supremacistas brancos, neonazistas e outros racistas”, lendo num teleprompter porque “falar de improviso seria impossível, diante de sua nítida falta de entusiasmo e a cegueira obstinada dos últimos dias”.

Rubin acrescentou que “os nacionalistas brancos em Charlottesville não ocultaram suas intenções”, pois “lá estavam para comemorar a presidência Trump, que explicitamente disse a eles que estava na hora ‘de retomar o seu país’. Ex-líder da Ku Klux Klan, David Duke, não deixou nenhuma dúvida quanto a admiração de seus seguidores pelo presidente.

Não ter rechaçado de pronto a manifestação de neonazistas e racistas históricos, segundo a jornalista “é algo que choca e coloca o presidente na categoria do político americano que aceita com muito gosto o apoio de nacionalistas brancos, de neonazistas e da direita alternativa (formada por nacionalistas brancos com pretensões intelectuais)”.

A maioria dos seguidores de Trump, se antes tinha um conceito não racista e mais benigno, foi afetada negativamente, atestou Rubin, “o que faz Duke e pessoas de sua índole ressurgirem das sombras”. A conclusão do artigo dá o que pensar: “A dança de Trump com os racistas é inseparável de sua plataforma de governo. Um presidente populista e nativista sem o apoio dos mais radicais defensores de uma América branca e cristã seria impraticável”.

O antecedente dessa sinistra forma de pensar e tratar aquele que se considera o oponente e, por isso deve ser eliminado, foi uma trágica realidade na Alemanha nazista.

O historiador Christian Ingrao em Crer e destruir (Zahar, RJ, 2015), diz entre outras coisas que em 1930, já é visível a dominação dos nordicistas nas instâncias do Partido Nazista, a ponto do livroPequena raciologia, escrito por Hans Gunther ter vendido rapidamente mais de 40 mil exemplares contendo orientações sobre higiene racial, seleção eugênica e consciência de raça.

Os próprios candidatos à SS e à temível Ordem Negra de Himmler, os elementos treinados pelo sistema que mais tarde dariam vazão ao genocídio de judeus e outras minorias na Alemanha, passavam por um exame raciológico baseado unicamente em seu fenótipo, assinala Ingrao, que chegou a anotar pormenores indispensáveis como a coloração clara do cabelo, nítida dolicocefalia e altura superior a 1,74 metro.

Outro autor contemporâneo, o italiano Domenico Losurdo no extraordinário livro Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917 (Boitempo, SP, 2017) ressalta a oportunidade de “não esquecer que, no nazismo, o paradigma étnico-racial se entrelaça facilmente com o paradigma psicopatológico; a ‘natureza’ de uma ordem fundada sobre a sã hierarquia racial deve ser defendida, por um lado, do assalto dos bárbaros ou das raças inferiores (paradigma étnico-racial) e, por outro lado, da subversão praticada, no interior da cidadela da civilização, por aqueles que cultivam ideias insanas de igualdade e nivelamento (paradigma psicopatológico). Não por acaso, Hitler se vangloria de ter descoberto o vírus judaico-bolchevique que fundamenta a revolta das raças inferiores”.

Entretanto, embora o choque que a revelação possa causar sobre leitores pouco informados sobre a história recente e, para concordar com o dito do pensador latino Terêncio (“Nada do que é humano me surpreende”) é obrigatória a reflexão sobre a formulação de Ingrao: “Quem se coloca inicialmente à frente da cruzada contra a conspiração judaico-bolchevique é Henry Ford, o magnata da indústria automobilística estadunidense. Para combatê-la, funda uma revista de grande tiragem, a Dearborn Independent: os artigos aqui publicados são compilados em novembro de 1920, num volume denominado The International Jew (O judeu internacional), que logo se torna referência para o antissemitismo internacional, a ponto de ser considerado ‘sem dúvida o livro que mais contribuiu para a celebridade dos Protocolos dos sábios de Sião no mundo”.

Ainda bem que o sábio bíblico Salomão já advertia nada haver de novo debaixo do sol.

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