6:52A entrevista de Simone de Beauvoir e outras histórias do Sebastião – I

por Paulo Roberto Ferreira Motta

Não sei como foi no tempo dos outros secretários, mas na época do René Dotti o expediente na Secretaria da Cultura começava às 8h00 e, depois do intervalo para o almoço, não tinha hora para acabar. Quem chegasse atrasado, levava bronca.

Certo dia, ao chegar na Secretaria, o Paraíba, que era o porteiro, me disse: “Tem um sujeito lhe esperando. Disse que quer falar com o Secretário”. O Dotti, que acordava às cinco e chegava na Secretaria antes das sete, naquele dia tinha despacho no Palácio. Dias antes, numa madrugada de chuva e escuridão, René, não querendo acender a luz, para não acordar a esposa, calçou um sapato preto e outro marrom. Ninguém percebeu, até que a senhora do cafezinho, ao servir o secretário, sentado no sofá, olhou, riu e disse: “Secretário, o senhor está com um pé preto e outro marrom”. Dotti caiu na gargalhada, mas não foi em casa trocar. Com cada um que falava mostrava os sapatos.

Entrei na sala e vi um sujeito baixinho, magrinho, com vasta cabeleira preta, como as asas da graúna, com centenas de fios brancos. O bigode, com a mesma coloração, era enorme e lhe tapava metade da boca. O dito cujo se apresentou: “Sebastião França!” Disse que era amigo do René há quarenta anos. Falei que ele tinha que esperar o Secretário voltar do Palácio, mas que naquela manhã a agenda estava tranquila. Sebastião solicitou um café. Pedi para servirem. Disse que tinha viajado a noite inteira de ônibus toco duro do Rio de Janeiro para Curitiba. O amarfanhado da roupa confirmava a história.

Uma hora depois, chegou o Dotti. Avisei da visita e ele confirmou os quarenta anos de amizade. Mandou o Sebastião entrar. Quinze minutos depois, me chamou. O Sebastião, natural de Curitiba, filho do maestro Antônio Milito, trabalhava na Embrafilme e, saudoso da cidade natal, queria vir pra cá por uns tempos. Na época, a Embrafilme era presidida pelo Fernando Ghignone. O René falou com o Ghignone e conseguiu a cessão do Sebastião França com o salário pago pela estatal do cinema brasileiro. Fernando só pediu um ofício, que eu mesmo datilografei, para oficializar a cessão e justificar o pagamento da remuneração. Sebastião França pegou o ofício, botou dentro de uma pasta, e voltou para a Rodoviária. Iria enfrentar mais 17 horas de toco duro até o Rio.

Uma semana depois, Sebastião estava de volta de mala e cuia. Instalou-se no Hotel Brasília, que existe até hoje, entre a Carlos Cavalcanti e a Barão do Cerro Azul, enquanto procurava um apartamento mobiliado para alugar.

Num final de tarde, encontrou, na Boca Maldita, um conhecido de velhos tempos. Era um rádio ator que, por incrível coincidência, estava voltando para o Rio pela milésima vez. Uma rádio carioca estava relançando a rádio novela e convocou o, digamos, Figura. Iria, depois dos 70, fazer o papel do galã que tinha 25. Ali mesmo, no fio do bigode, fizeram a permuta. Sebastião foi morar na Saldanha Marinho, pertinho da Secretaria, e o Figura na Nossa Senhora de Copacabana. Sebastião achou que ficou no lucro, o apartamento da Saldanha era melhor que o da Copacabana e os aluguéis e condomínios equivalentes.

Já disse que o acerto foi feito no fio do bigode, nem trocaram os papéis nas imobiliárias. Só que – sempre tem um só que – o Sebastião tinha bigode, vasto como eu já disse, e o Figura não tinha. No primeiro mês, pagou o aluguel, mas não o condomínio. No segundo, pagou o condomínio, mas deixou de honrar o aluguel. No terceiro, nem aluguel nem condomínio. O Sebastião, cansado das ligações da imobiliária carioca, tentava achar o Figura, deixava recado na secretária eletrônica, na rádio e o Figura nada. Um dia, o ameaçou de morte. Recado ouvido, o Figura ligou pro Sebastião e disse: “Não se preocupe, passei hoje na imobiliária e acertei o valor dos alugueres (sim o Figura, como bom rádio ator falava alugueres) e dos condomínios. Dei um cheque do Unibanco”. O cheque, como imaginou o leitor, era borrachudo. Bateu e voltou.

Sebastião resolveu ir à guerra. Pediu uma licença de dois dias, foi ao Rio, abriu o apartamento (tinha cópia da chave), retirou todos os pertences do Figura e os jogou no corredor. Mandou chamar um chaveiro e trocou a fechadura da porta. Após o “despejo”, foi na imobiliária e saldou os débitos do Figura.

Ao voltar a Curitiba, tinha um recado do Figura dizendo que “perdoava” o Sebastião, falou que o nervosismo e a atitude por demais “violenta e radical” não tinham razão de ser. Ao final, pediu para o Sebastião deixar o apartamento da Saldanha. Era desnecessário, o França já tinha alugado outro, no mesmo prédio, que estava vago. O Figura ficou sabendo e só de raiva alugou outro apartamento no mesmo edifício da Nossa Senhora de Copacabana. Sebastião, no outro apartamento, só não gostou do colchão, era mole demais. Foi no Hermes Macedo e comprou um novo, durinho, que pagou em seis suaves prestações mensais no carnê.

Assim que chegou a Curitiba, Sebastião, cineasta, recebeu a primeira missão. Por aqueles dias, iria acontecer em Guarapuava as “Cavalhadas” e o prefeito Nivaldo Krüger havia pedido ao René que mandasse uma equipe para filmar o acontecimento, queria deixar registrado para a história. Tempos atrás, quando o meu querido amigo desembargador Fábio Haick Dalla Vecchia recebeu o título de cidadão benemérito de Guarapuava, reencontrei o Nivaldo Krüger, forte e rijo, contando as histórias do MDB Velho de Guerra. Como o pessoal do MIS – Museu da Imagem e do Som fez corpo mole, não queria passar o final de semana longe de Curitiba, o René Dotti escalou o Sebastião França.

“Cavalhadas”, para quem eventualmente não sabe, é uma encenação épica, de origem ibérica, realizada em campo aberto, onde centenas de cavaleiros, devidamente montados, trajados e armados como na época, relembram as batalhas entre cristãos e muçulmanos nas Cruzadas pela conquista de Jerusalém. Nas Cavalhadas, invariavelmente, os defensores da cristandade saem vitoriosos, muito embora a história registre que Saladino (para os íntimos, que eram muitos, Salãh ad-Din), comandante dos islâmicos, botou para correr o Ricardo Coração de Leão (que também tinha muitos íntimos). Muito embora a ferocidade com que que dirigia seus comandados no campo de batalha, Saladino era magnânimo na vitória. O soldado do Papa que se ajoelhasse e gritasse Allahu Akbar mandava se alistar nas suas tropas e ganhava soldo, coisa que o Bispo de Roma não fazia, “que se virassem com o saque das cidades e dos despojos do inimigo”. Permitiu que a soldadesca cristã, desarmada, entrasse em Jerusalém para orar na Igreja do Santo Sepulcro. Aos oficiais inimigos, também desarmados, só deixou que rezassem nas muralhas da cidade. Sabedor de que o cavalo de Ricardo Coração de Leão morrera na batalha, presentou o Rei da Inglaterra com dois alazões árabes. Não iria deixar o inimigo atravessar o deserto sem montaria.

Missão dada, missão a ser cumprida. Sebastião, numa sexta-feira, de manhã muito cedo, com a Veraneio da Secretaria, passou no MIS, pegou o material necessário, buscou o Valêncio Xavier em casa e se mandaram para Guarapuava. Com uma câmara na mão e muitas idéias na cabeça, os dois montaram o roteiro do documentário durante a viagem. No sábado e no domingo, fizeram as tomadas e depois foram pro MIS editar. O documentário, antes de ter uma cópia encaminhada ao Nivaldo Krüger, teve pré-estreia no vídeo e na TV que ficavam na sala do René Dotti. Ficou bem legal.

Um belo dia, saindo pela Saldanha Marinho, na hora do almoço, vi o Sebastião indo em direção à Catedral. Fiquei curioso e fui atrás, dando a distância regulamentar para não ser visto. Jurava que o Sebastião, sem contar para ninguém, iria rezar. Chegando por detrás da Catedral o Sebastião se escafedeu por umas ruelas. Não, não foi orar. Acelerei o passo e vi o França entrando num Pé Sujo. Estava sentado numa mesa de dois lugares, de costas para a porta. Entrei e me instalei na mesa do Sebastião. Ele surpreso, perguntou se eu também almoçava por ali. Respondi que não. Sebastião então explicou como funcionava o Pé Sujo: O cardápio tinha prato único ao custo de um cruzado. Generosas colheradas de arroz, conchas de feijão preto, um ovo estalado, cinco ou seis batatas fritas. O bife, mais batido que torturado pelo coronel Ustra, podia ser encontrado debaixo das batatas fritas, que eram redondinhas, mas vinham pingando a óleo. Era sair do Pé Sujo, entrar numa farmácia, e comprar um omeprazol. A água, torneral, cortesia da casa, vinha numa garrafa de gasosa de gengibirra, veterana da Guerra do Contestado. Pelo preço, era óbvio que não tinha sobremesa.

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