por José Maria Correia
O tio viúvo morava com duas filhas adultas e solteironas em um belo e antigo casarão na rua Sete de Setembro.
No pórtico havia as armas do império.
Na entrada, uma porta dupla de pé direito alto e janelas enormes. No interior o assoalho todo de tábuas largas de mogno.
As camas nos quartos eram bem altas e davam até para guardar baús embaixo, como era o costume da época.
Lá por 1950, ainda pequenino, minha mãe me levava aos domingos para passear de bonde e visitar o tio e as primas mais velhas, já moças e atraentes.
O tio era engenheiro e filósofo. Um homem bonito, sempre de terno bem cortado e muito elegante.
Aos oitenta anos lembraria hoje o famoso ator Tarcisio Meira, também idoso.
Nos recebia com chás e doces feitos pela prima mais velha; tortas de morango, pudins e doces de laranja, capilé fresquinho, gasosa , balas de banana de Antonina.
Depois levava eu e meu irmão Murilo para brincar com sua coleção de miniaturas de trens elétricos.Nos deixava encantados pilotando as locomotivas, acendendo luzes e apitando ao passar por túneis e pontes.
Um raríssimo privilégio para crianças acostumadas com brinquedos bem mais simples.
Quando a mãe perguntava da prima mais nova, a Nina , ele respondia, sorrindo enigmático, que estava na sua terapia.
A Nina sofria de desamor da juventude, não tinha namorado e também era poeta, era uma moça bonita e delicada, como a atriz Letícia Sabatella, de olhos muito expressivos .
Nos dias de desencanto e nas tardes modorrentas do verão curitibano , quando batia a angústia do domingo, ia para o seu quarto e entrava com um vestido leve, descalça, embaixo da cama enorme .
Lá permanecia por horas com a face colada ao mogno ouvindo apenas o silêncio do mundo e sentindo o frescor e o perfume imortal das tábuas do amazonas.
Nos dias de maior vazio, umas lágrimas ficavam por lá.
Tinha um pouco de sangue índio do lado materno, daí também a recordação atávica e a melancolia
Silêncio espiritual, recolhimento interior e reflexão profunda sempre acompanharam os religiosos de todas as crenças.
E como fazem bem!
Em outro país, nos EUA, ao pesquisar o comportamento de animais no abate com menor sofrimento, a psicóloga e autista
Temple Grandin criou sua máquina do abraço, um tipo de canga que usava no pescoço na faculdade como forma de tranquilizar um pouco as angústias.
Virou livro e filme de sucesso.
Estranho.
Pois bem, desde criança sempre tive também meus refúgios – o principal, o telhado da casa, onde ninguém jamais me encontrava.
Depois, os galhos de árvores enormes, nos quintais vizinhos. Para mim eram meus e dos passarinhos, apenas.
Como a prima Nina, eu também passava minhas horas de total solidão.
Na praia, em Matinho, as canoas na areia me acolhiam aos crepúsculos e também nos meus esconderijos nas grutas das rochas junto ao mar.
E aqui em casa só tenho o assoalho que os cães e gatos agora dividem comigo entre velhos livros sempre abertos .
Vou comprar enfim uma cama antiga, alta, de madeira, igual a da prima Nina, para poder ficar embaixo nesses dias intermináveis de Covid e de isolamento ,
Quero ouvir só o som do sino do bonde nas memórias e o ronronar dos bichos – até um dia, que sabe, recupere o ânimo .
A possibilidade de escrever algo positivo e esperançoso, o que parece muito improvável nesses dias de trevas e tristezas que desconstrói nossa pobre pátria amada, “tão frágil , tão pobrinha”
Ah , quando a gente terminava a visita ao tio, eu entrava embaixo da cama – ficava um pouco com a Nina, a face de criança na tábua – e nos olhávamos no mais profundo dos silêncios .
Eu me sentia como no abrigo do ventre materno. Depois, eu segurava na mão da prima e dizia: “Tchau Nina”. Ela sorria muito calma e respondia apenas tchau.
Falávamos de nossas incompletudes e tristezas pelos olhares compreensivos.
Lembrei de tudo isso num domingo recente, de muita compaixão e perdas, o décimo sexto de isolamento. Foi brabo, pegou pesado .
Tio Aristóteles era um sábio
Não questionava nada
Entendia a alma humana e suas necessidades de fugas e refúgios, de solidão e abandono
Era muito
Que texto bem escrito! me trouxe recordações, eu também ficava em cima do telhado da minha casa e no pé de manga da minha avó, ficava horas lá em silêncio
Abração, amigo Zé Maria.