7:13A CURITIBA QUE CONHECI

por José Maria Correia             

     “A memória é o paraíso do homem”.   

Com o perdão do mestre Rubem Braga, que abominava os textos dos memorialistas, como escrever sobre Curitiba sem a evocação da memória?

Afinal, são mais de sessenta anos de andanças e perdições, percorrendo caminhos e descaminhos.

As esquinas antigas que me viram jogando bolas de burico e correndo inutilmente atrás dos balões nas festas juninas, são as mesmas que escondem solidárias até hoje os ecos de minhas ingênuas paixões adolescentes.

Essa, a minha velha Curitiba, confidente única, a parceira do silêncio que comigo dividiu os roteiros juvenis e secretos de sentimentos ardentes e de tantas lágrimas vertidas por inocência e ausência de malícia.

Com que saudades Curitiba, vejo ainda nas fotografias do imaginário, os lambaris translúcidos povoando todos os rios da minha infância, águas cristalinas terminando em pequenas quedas e cascatas, domingos de futebol, campos verdes e multidões em tardes douradas de encantamento.

Como esquecer as doces manhãs de guarda-pós brancos, brilhando alvos como marfim nos pátios de saibro das escolas,19 de Dezembro, Julia Wanderley e Belmiro Cesar, onde aprendemos o lema ‘firme, forte, franco e fiel.

Quanta devoção pelas primeiras professoras, musas inatingíveis e primeiros amores a criar sonhos febris e fantasias até hoje irrealizadas.

E que tempos os do Colégio Estadual, dos esportes olímpicos, do teatro de vanguarda, da música e da literatura, tudo tão diferente de hoje, da linguagem virtual minimalista, das decorebas em cursinhos massificados e vestibulares do marketing e do comércio.

Foi no Estadual, na antiga biblioteca, com a cumplicidade dos mestres e eruditos, que expandi a mente, devorei a trilogia “Os Subterrâneos da Liberdade” e toda a coleção de Jorge Amado, autor proscrito e no índex da ditadura militar que nos sufocava e restringia, mas não nos submetia.

E os roteiros underground: o voyeurismo de espiar as lindas modelos posando nuas nos porões da Biblioteca Pública, os olhos grudados nos vitrôs semi-abertos embaixo da rampa e as mãos nervosas nos bolsos das calças.

Levar as namoradas de surpresa na terrível morgue da Universidade, e tirar proveito da imobilidade causada pelo terror da visão da morte mumificada em formol, para minutos de roubado erotismo.

Invadir à noite os porões e o labirinto de rituais de iniciação das lojas maçônicas, tentar decifrar as inscrições e os símbolos proibidos e os desenhos de esqueletos e, finalmente, a prova suprema de coragem: pular o muro do Cemitério Municipal à meia noite e atravessar sozinho de ponta a ponta, passo lento e sem pressa, entre assustadoras cruzes de bronze e sombrios anjos de pálido mármore iluminados por esquecidas velas e círios.

Essas proezas conferiam status. Só não me perguntem quem criava tais desafios.

Depois, deixado o Estadual e já na Faculdade de Direito na Federal, vieram outros enfrentamentos, riscos maiores e nem sempre percebidos.

Em 1968, o ano da rebeldia em todo o mundo, veio a tomada da Reitoria na luta pelo ensino público e gratuito, os muitos confrontos com a repressão, as passeatas que tomavam toda a Rua Quinze, paralelepípedos nas mãos, os comícios relâmpagos, as panfletagens e as pichações.

Quem era preso apenas por protestar contra o arbítrio ficava recolhido, uma longa temporada na grade; quem escapava , resistia – e na rua permanecia por conta e risco.

Essa foi a geração do festival de Woodstock, dos cabelos longos , do amor não tão livre e também da consciência dos manifestos de coragem da utopia por uma sociedade mais justa , da tinta spray e das canções contra os tanques e os blindados, as bombas e as torturas nos calabouços.

Contra os fuzis os cassetetes e os mosquetões, apenas os estilingues e as pedras como fazem hoje as crianças e os adolescentes na Palestina.

Olhando para esse tempo que não morre nunca, remanesço ainda um peregrino de todos os meus lugares santos, romeiro do antigo Bar do amigo Pasquale, cantado em prosa e verso pelo Dante Mendonça, a praia curitibana de sábado no Passeio Público.

Socorrido sempre fui nas emergências da fome pelos sanduíches do bar Triângulo e comensal de jantares intermináveis no restaurante Palácio, da Barão do Rio Branco, onde mulheres desacompanhadas inexplicavelmente não eram admitidas, ordens da casa- diziam os cordatos garçons Mozart e Adriano.

E é na memória emotiva já fragilizada que ainda procuro todos esses lugares.

Procuro eterna e inutilmente a minha taça de morango com nata, objeto de desejo, encantada e esquecida para sempre em alguma mesa de almoço de domingo com meu pai no restaurante Bar Paraná, da rua XV.

Procuro na dor da perda, meu pai, com um grito que não cala em meu coração e ecoa esses anos todos, cada vez mais sofrido, mas também mais próximo de silenciar.

Procuro na orfandade adulta o abraço da mãe que nunca mais sentirei.

Procuro inutilmente, mesmo em lembranças, minha juventude e a mim mesmo.

Tenho nostalgia do que fui, do que vivi.

Nem sei se estive mesmo em uma noite de delírios de meu corpo jovem na imagem caleidoscópica multifacetada em cor neon- luxúria, criada pela Maria Japonesa na magia do quarto dos espelhos da boate 4 Bicos na Vila Oficinas.

No antigo estádio Joaquim Américo eu sentava à sombra dos pinheiros e nas arquibancadas de madeira, fechando os olhos ainda escuto os gritos a cada gol do Furacão rubro-negro, o verdadeiro do Jackson e do Cireno, assim como escuto em meus sonhos de olhos abertos, as batidas de pés no chão do Cine Curitiba a cada vez que arrebentava a já gasta fita do seriado do Fu-Man-Chu ou do Sombra (pam /pam/pam/pam/pam/pam.)

Cada vez que vou ao aeroporto ainda ouço ao longe os metais da orquestra do maestro Genésio do dancing Águas Belas, perto do primeiro motel, o 007 do pioneiro Cobrinha, e as sirenes assustadoras das viaturas em mais uma das intermináveis batidas policiais da Ronda do Delegado Paulo Lagos; e intuitivamente olho em volta em busca da proteção do armário em que, menor de idade me escondia.

E no porão do velho Clube Curitibano do centro, ainda dá para escutar o eco do cantor Natinho em dueto com a paraguaia Perla, na animada boate dancing Presidente, do grandão Coelho, Galopeiraaaa.

No fim da madrugada, lá no alto da Rua Visconde, na boate Caverna da Bruxa, se encontrava o craque e ídolo Zé Roberto, o Gazela de Ouro, tomando a penúltima e descrevendo para as meninas os gols que faria algumas horas depois, fugido da concentração e do velho técnico- o grande Tim.

De carnavais lembro bem que em um grandioso baile do Operário, suprema glória da viadagem curitibana, o decano Osvaldinho abandonou o banco onde reinava na Praça Osório, seduzindo os soldados vindo do interior, para ir triunfar no Gala Gay fantasiado de Candelabro Italiano, como no filme sucesso da época com a música Aldila e estrelado pela Suzane Pleshette e pelo Troy Donahue.

Não deu muito certo – e nesse famoso desfile, o Osvaldinho, com um corpo de toureiro espanhol, entrou em cena com candelabros e velas acesas em cada braço e plumas, muitas plumas de pavão por todo o corpo, o público delirou com a coreografia, só interrompida pelo incêndio causado pelas chamas sobre os adereços, o que forçou o bravo artista a ser retirado nos braços atléticos de um dos bombeiros de plantão, para delírio da viadagem.

Já em outra Rua, a tradicional Comendador Araújo, quase ao lado da Igreja Presbiteriana, estouravam todas as noites nas panelas as pipocas do maitre Orlando na boate Gogó da Ema, metade milho, metade sal, para matar de sede os clientes, circunspectos doutores, e faturar mais alto nos drinques de claricol, campari e Sant Remy exigidos pelas meninas de programa docemente apelidadas de bailarinas, embora só bailassem mesmo na cama das espeluncas onde eram levadas pelos fregueses.

Quando a boite fechava, iam todas elas em séquito matar a fome com uma canja da madrugada e ouvir as histórias cheias de ironias, sabedoria, metáforas e advertências aos boêmios, platéia do sábio velhote Perly na mesa redonda que dividia com o escritor Jamil Snege e o Almir Feijó no café do Hotel Colonial, o último refúgio da intelectualidade notívaga de Curitiba – e que já fechou as portas há décadas.

Eram as bruxas de pano do final de noite, trágicas, cansadas e entristecidas como a pintura da Sien de Van Gogh.

O fato é que por onde andei tratei de marcar como sacras todas essas referências antigas.

As portas cerradas dos botequins e restaurantes que nunca mais serão abertas e que escondem em seu interior vidros coloridos e opacos com os mais preciosos tesouros de minha infância, balas de ovos, balas de banana de Antonina, as figuras do Zequinha, copos de capilé, biscoitos Lucinda e Maria Mole no balcão do bondoso e paciente Seu Estacho.

Só esta Curitiba única foi minha companheira de desabafos etílicos em madrugadas brancas de névoa e neblina entre rubros vômitos de Cuba-Libre, Gin e Hi-Fi, drinks de adolescentes que nunca souberam beber.

Nas esquinas ficaram também as serenatas e os buquês de rosas recusadas, o bumbo silenciado do Fernandinho louco, o som nas radiolinhas de pilha do Rock Around The Clock, Elvis Presley, twist, Chubby Checker, Beatles e Rolling Stones.

Todos se foram, como foram o ronco dos escapes abertos das Kombis, dos DKWS e dos Gordinis fugindo das possantes motos Harley Davidson dos guardas Guerra e Pignatari, incansáveis, atrás da gurizada.

E uma a uma as lembranças foram substituindo as ilusões dos amores que seriam eternos, das conquistas definitivas e dos amigos que durariam para sempre, mas já se foram sem despedida.

Os rios e riachos foram cobertos de concreto urbano como lápides, perderam a vida e o encanto, os bosques foram enterrados em cimento, tumbas de vidro e aço e as estrelas encobertas pelas luzes artificiais desistiram de pedir socorro.

E os cinemas, ah os cinemas esses são os insubstituíveis, o velho Luz com os cartazes de Sansão e Dalila pintados à mão pelo artista, o investigador Maciste, o Avenida com os épicos entre eles os Dez Mandamentos que tanto me impressionou.

As matinadas do Ópera com os desenhos depois da missa e a as matinês do Palácio com as comédias água com açúcar de Doris Day e Rock Hudson, estranhamente adorados por Paulo Francis, embora de péssima qualidade e sem nenhum conteúdo..

Nas bombonieres se buscava um drops Dulcora a delícia que o paladar adora, balas de chocolate e azedinhas, e life savers, tudo era diferente. mágico e apreciado.

O destaque era o gigante Cine Vitória que foi o nosso Chinese Theater tão louvado pelo cronista misógino da Tribuna o E.G.C., sempre impecável em sua inseparável capa de gabardine italiano e que ciceroneou Janet Leigh e Karl Malden depois de um festival organizado por ele e os colegas jornalistas , com direito a um jantar na Confeitaria Iguaçu da família Mehl.

Dos velhos e grandes cinemas transformados em bingos, igrejas mercenárias e estacionamentos decrépitos restaram só fotos e cartazes desbotados como se fossem figurinhas coladas para sempre nas páginas do álbum de minha alma melancólica.

E de tanta perda, salvo apenas as lembranças, já que procuro ainda e desesperadamente, os meus mortos todos.

Procuro a todos esperando inutilmente que um dia renasçam ou desmorram para me fazer companhia, ou deverei partir eu, já que de cada um deles e desses lugares queridos sou muito precisado para reencontrar a minha cidade.

Mas procuro também os vivos e a coragem de gritar bem alto quanto eu os amo e que a vida seria impossível sem cada um dos que restaram e dos que vieram depois.

Esta procura termina sempre em silente exaustão naquele que um dia fui.

E assim, já que o tempo não volta mesmo e as pessoas não se desencantam, fico com a alternativa única de que falava o poeta Rylke: viver apenas o que resta.

Amparado com a esperança demencial a que se referia sempre Ernesto Sábato.

Viver, tentando compreender tudo como um recomeço e não um fim de linha pois “a vida é o sonho de ontem que não retornará” como disse o poeta Gibran”.

E proponho me convidar e ao companheiro de leitura para a interminável gravidez do mundo, onde todas as manhãs, apesar de tanta desesperança, há um radiante parto de luz e a rara perspectiva de um esperado reencontro com amores, ilusões e seres, que apesar de perdidos para sempre ainda habitam em cada um de nós.

Pesam em nossos destinos, zumbem em nosso sangue e de quando em quando emergem, repetindo-se em nosso gestos, textos e palavras, parece que os imitamos para nos aliviar e consolar. 

A vida é o sonho de ontem que sonhamos sempre, e o que virá depois.

Agora vivemos os tempos mais estranhos e sombrios , dos funerais em massa de doentes solitários e amargurados que partem sem despedidas nem cerimônias.

Os sinos dobram quebrando o silêncio das cidades onde mora o medo.

E os que se julgavam reis e poderosos descobrem suas fragilidades como ciscos no vento.

E muitos se irão sem terminar as obras que julgavam essenciais.

 

Assim do mais longo e dramático dos Outonos que conhecemos , restará de significativo o bem ou o mal que fizermos .

 

E as sombras das luzes deixadas pelo resplendor da vida vivida , perdidas e adormecidas entre as constelações infinitas do universo .

 

E as memórias, somente as memórias.

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9 ideias sobre “A CURITIBA QUE CONHECI

  1. Parreiras Rodrigues

    Esse é o meu amigo Zé Maria – não consigo chamá-lo de doutor que é. E para provar que li, por onde anda Natinho? Quem é EGC? E porque você não citou o pipoqueiro da baixada que instigava: Pipoca e amendoim torrado na hora. Quem quiser que PIDA!

  2. Raul Urban

    COMO É BOM, NO DIA DO ANIVERSÁRIO DA CIDADE, RELER MEMÓRIAS DE ALGUÉM QUE SABE, COM DESTREZA, DE FORMA LÚDICO-POÉTICA, RETRATAR UMA CIDADE VIVIDA COM SEU PASSADO DENSO! TAMBÉM SOU MEMORIALISTA. JORNALISTA; TAMBÉM VIVI, AO LONGO DOS MEUS 71 ANOS, 55 DELES EM CURITIBA -, PARTE DESSAS HISTÓRIAS E ESTÓRIAS. QUE CONTINUEMOS FAZENDO DAS LEMBRANÇAS OS BONS MOMENTOS DE QUEM QUER E SABE VIVENCIAR UM TODO, ENQUANTO INSTRUMENTO DE PAIXÃO.

  3. Walter Werner Schmidt

    Maravilha de texto. Faço apenas uma ligeira observação: a Caverna da Bruxa ficava na Alameda Cabral, esquina com a Martim Afonso. Grande abraço,

  4. jose maria

    Agradeço aos amigos, Zé Beto por publicar , Raul parceiro memorialista, Sk e o sempre gentil Parreiras.
    Natinho vai bem, gosto muito dele.
    EGC era o cronista Ernani Gomes Correia( por sinal meu tio) escreveu a coluna Roda Gigante por décadas na Tribuna do Paraná. Foi um grande cinéfilo e animador cultural . Fazia parte de um grupo de intelectuais de Curitiba . Bom domingo para todos e muita saúde

  5. Célio Heitor Guimarães

    Belíssimo texto, grande Zé Maria! Daqueles que só você sabe tecer. Como somos (quase) contemporâneos, senti-me caminhando ao seu lado, com grande prazer e saudade. Um abraço deste neo-curitibano.

  6. jose maria

    Obrigado aos amigos grande Célio e o Walter, errei a Caverna da Bruxa por uma quadra rss abraços jm

  7. Raul Urban

    PS: ainda numa alusão ao brilhante texto, quero lembrar ter tido o privilégio de conhecer e trabalhar com o sempre lembrado EGC, nos áureos e românticos tempos da Tribuna/Estado, de 1968 a 1974, quando a redação era na Barão, 556. EGC era o marco de um tempo, que soube contar os momentos curitibanos observados do alto de sua Roda Gigante, e que nos brindava, sempre elegantemente vestido, na redação da Tribuna que funcionava nos fundos da Barão (logo abaixo estava a oficina, comandada pelo eternamente lembrado Barriga). Faz bem voltar ops olhos a um período que se foi, mas que guardamos, saudosos, porque soubemos – ainda sabemos – reverenciar. Forte abraço, Zé Maria, no aguardo já de novo e primoroso texto.

  8. Ivan Carlos Bueno

    Belo texto. Parabéns. É o tal do texto “saboroso”. A tecnologia ambientará com clima, som e, quando comida e bebida, com paladar os textos no futuro. Teu texto, José Maria Correia, já é o futuro. Quem viveu, vive de novo e quem não viveu, vive o clima, a época e a Curitiba de tempos inesquecíveis de nossa geração. Parabéns pelo final que define tudo: “E as sombras das luzes deixadas pelo resplendor da vida vivida , perdidas e adormecidas entre as constelações infinitas do universo ”
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