19:47ZÉ DA SILVA

A lâmina fez uma pequena ferida no lado esquerdo do rosto. E ela ficou passando ali um ano inteiro, diariamente, por obrigação. Marcha soldado! Ao guardar a farda para, quem sabe, mostrar aos filhos e netos, nunca mais! Quatro anos depois um bicho desembarcou na nova cidade. Tudo crescia como grama sob sol e chuva constantes. Assim foi até que os caminhos se transformaram em labirintos, numa paisagem de pesadelo. Ele combinava com aquilo. Pouco banho, unhas sujas, roupas quase trapos. Não foi amarrado, mas acordou um dia no Pinel. Até hoje guarda o crachá, para não esquecer. O dia em que, já desintoxicado, o doutor psiquiatra fez a pergunta que entrou e percorreu toda uma vida, a memória, os sentimentos confusos e incertezas… e ele então se perguntou onde estavam o pai e a mãe. Longe, mas precisava dar a resposta para a simples questão em dose dupla: “Por que tem essa barba? É para ser esconder?” Ele não sabia o que dizer, mas saiu dali correndo com a certeza do que fazer. Olhou no pequeno espelho do banheiro daquele alojamento onde 12 dormiam e, talvez, sonhassem com alguma revelação que os tirassem não dali, mas das catacumbas. Olhou e se achou bonito, depois da cirurgia, ao contrário da certeza que carregava desde criança. O rosto limpo encarando tudo ficou para sempre. Agora três lâminas fazem o serviço diariamente. Diz para si que pode levar quantos tapas da vida forem precisos. Aguenta, porque o riso debochado ficou mais escrachado.

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