6:35Dentro do conto

por Thea Tavares

Um amigo da adolescência foi quem me apresentou “Olhos de Cão Azul”, do Gabriel García Márquez. Não me refiro ao livro inteiro, só ao conto que dá nome a ele. Tanto que a primeira vez que li nem foi na obra completa, mas por uma fotocópia apenas das páginas do conto, como a gente costumava reproduzir para estudar um capítulo, um texto apenas, na copiadora da faculdade. Esse meu amigo da época do 2º Grau (era assim que se chamava esse período escolar no meu tempo), adorava o conto e acredito até que houvesse alguma intenção velada ao me apresentar a história. Nunca saberei. Essa constatação só chegou anos mais tarde, passou desapercebida na ocasião em que poderia render algo para além do platônico que pairava sobre a nossa amizade juvenil. O fatídico “se” só surgiu quando a vida já tratara de afastar as pessoas e arquivar as respostas.

Ficou o conto. Companheiro de várias releituras. Volta e meia tenho a sensação de estar dentro dele, imersa naquela angústia desesperadora e desesperançada, mas que teimosamente se renova para dar sentido às nossas buscas pelos imprevisíveis caminhos da vida. Ai, ai, vida minha! Não tem nada mais contraditório com a reflexão que a história nos remete, sem falar na temática que permeia os demais contos do livro, que essa inquietude torturante.

Não é raro acontecer, à luz do dia, bem distante das lembranças e dos esquecimentos dos nossos sonhos, com modo de piloto-automático ligado, uma troca repentina de olhares, de curiosidades e de situações incompreensíveis demais para estabelecer qualquer ponte com a racionalidade… Não é raro acontecer ainda de esses episódios trazerem à tona a memória do enredo do conto de García Márquez. Pergunto ao silêncio que tipo de experiências o autor vivenciou para receber a inspiração daquela trama? No fundo do coração dele, que fatos o motivaram a escrever e materializar no papel aquele encontro tão desencontrado entre duas almas na ficção que foi, ao mesmo tempo, tão intenso na delicadeza e fragilidade daquelas projeções compartilhadas?

Decidi não eternizar mais o incompreensível e botar um fim naquela relação permeada por uma ausência de comunicação que logo descambaria para mal entendidos e para uma incômoda irritação. Vivemos tempos perigosos para as relações humanas, em que o mistério gera medos, inseguranças e repúdios. A vida tem cerceado a mágica e a beleza das interações espontâneas e inusitadas, mesmo que as equivocadas, atravessadas e desengonçadas interações. Não lembro quem começou a olhar, quem retribuiu primeiro de curiosidade e muito menos quando aquilo passou a incomodar alguém. Virou uma repetição interminável de efeito Tostines: vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? No caso em questão, virou um não se sabe quando alguém olhou porque percebeu que a outra pessoa o observava, quando foi que o outro olhou de novo só para confirmar e a partir de que momento se tornou um hábito os olhares de ambos se cruzarem simplesmente.

– Confundi você com outra pessoa, disse.

– E foi!?.

– Foi.

– Num dia em que fiz aquele exame que dilata a pupila e a vista fica embaçada por horas, sabe?

– Sei.

– Então, tá.

Acabou assim, papo reto, na passada da régua, aquela constrangedora versão Viúva Porcina do meu “Olhos de Cão Azul”. Sem sal, sem pimenta, sem cheiro, sem música. Já posso voltar a dormir também sem compromisso.

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