5:42Pensa num batizado Tabajara!

por Thea Tavares

Acabou que deu tudo certo, mas até o encerramento da cerimônia, muita água benta passou debaixo daquela ponte…

A menina já tinha bem seus cinco anos de idade quando disse que queria ser batizada. Suspeito de uma certa influência de vó nessa história, mas só sei que foi assim e que foi nessa ocasião que se deu tal escolha. Não era batizada porque os pais decidiram que não iriam impor à menina uma religião pura e simplesmente e também que algo tão íntimo, pessoal, importante e responsável como isso deveria ser fruto da escolha das pessoas. Suspeito ainda que o trauma tenha dado o tom desse encaminhamento.

Ambos, pai e mãe da menina, foram batizados no estilo que era tradicional até décadas atrás e criados seguindo ritualmente todos os sacramentos do catolicismo. Fizeram primeira comunhão, foram crismados e nunca se casaram na igreja. Encurtaram esse caminho porque naquela fase da vida já eram donos dos próprios narizes e puderam fazer suas opções livremente. Não tinham mais o cabo de vassoura da mãe ou a cinta do pai no lombo, pernas e bundas, convidando para acordarem cedo no domingo e irem à missa.

Chegando lá, como nenhuma criança tanto da família da mãe quanto da gangue do pai levava o menor jeito pra ser bem comportada e tranquila, a malhação do Judas continuava. Puxão de orelha pra ficarem quietos ou pararem de rir pra cá, beliscões, cascudos e petelecos que acordam de hibernação para lá… E se nada disso bastasse, Deus estava vigilante, porque Ele não tinha nada mais importante para fazer, senão castigar os arteiros e blá-blá-blá. O último dos últimos recursos que os pais utilizavam para colocarem a molecada nos eixos era apelar para o medo: prometiam repetir a história do crime hediondo e político que aconteceu há mais de dois mil anos quando chegassem em casa, em detalhes que martelariam na insônia e no pânico dos pobres capetinhas. Eles faziam xixi nas calças, mas não ousavam se levantar e ver o relâmpago projetar-se sobre o enorme crucifixo de parede, pendurado no corredor, entre o quarto das crianças e o banheiro.

Talvez tenha sido por isso que a missa – pasme! – do capelão da Base Aérea do Bacacheri, na época, convenceu a menina de cinco anos a deixar de ser pagã (que era como a avó definia barbaramente a condição da netinha), na forma que a meiga vovozinha encontrou de perpetuar o terrorismo e se manter no comando da salvação das almas da família. Acontece que o capelão era um nordestino gente boa demais. Chamava a criançada lá para frente do altar e dizia a elas: – Aqui, vocês podem brincar, podem se divertir e podem até prestar atenção na missa se quiserem. O espaço é de vocês! Quero que gostem de vir aqui. Acabava que quem levava o puxão de orelha na celebração do domingo, com isso, eram os pais. A criançada, até pelo respeito estabelecido com a autoridade, passou a brincar de se comportar. Entendia tudo de psicologia infantil aquele padre.

Na véspera do batizado, a avó pergunta se a mãe não havia, por acaso, se esquecido de comprar as velas para levar na igreja na manhã seguinte. Que velas?!? Foi um tal de sair atrás das fucking velas por Curitiba num sábado à tarde. Único lugar mais próximo que encontrou aberto foi uma casa de artigos religiosos. Perfeito! A criança deixaria de ser pagã com vela de umbanda. Na dúvida, a mãe comprou um pacote inteiro e o excedente já ficou guardado para qualquer emergência futura de falta de luz. Praticidade é tudo! Num armarinho ali perto, conseguiu também umas fitinhas para disfarçar e fazer um laço em torno das velas. Quem disse que o tecido fino parou na superfície da parafina sem deslizar? Nem com “Cascolar” que tinha em casa e nem com reza braba mesmo.

Preciso fazer um recuo na história para apresentar os padrinhos escolhidos pela criança. Ele era professor, que trabalhava próximo à mãe e fazia sucesso junto à menina pelas piadinhas ao mesmo tempo infames e inocentes que contava. Uma vez, desenhou para a criança as pessoas do trabalho e fez uma fumacinha saindo detrás do chefe chato, para quem a menina virava a cara sempre que visitava a mãe no escritório. Aquele desenho de pum fez a pequena rir litros de vingança infantil e foi determinante para consagrar o lugar do professor no batizado empoderado da garota. Aliás, a última vez que padrinho e afilhada se encontraram foi naquele domingo, décadas atrás. Mas ela guarda no coração sua escolha com muito carinho – a lembrança sempre a faz sorrir, óbvio – e nunca manifestou qualquer fagulha de arrependimento quanto a isso. Já a madrinha é presença constante o ano inteiro. Mesmo distantes, a interação entre elas, por meio das redes sociais, é um rolê à parte.

De volta à cena do batizado, sem choro e com vela, chega a hora em que o padre explica a simbologia do ritual. O óleo, a água e a chama da vela… aquela vela, qualquer que seja a vela. Explica que é uma referência à luz do conhecimento sobre o significado do sacramento do batismo. A chama dos valores e da religião, que não poderão se apagar e acompanharão a criança ao longo de toda a vida. Avisa que os padrinhos, na ausência dos pais, têm o dever de manter vívida, acesa e forte no cotidiano da criança aquela chama. Quando ele pede para todos fazerem o sinal da cruz, o padrinho (ex-seminarista) sai na frente, fazendo o gesto com orgulho, enquanto a madrinha olha desesperada para os lados, tentando aprender como se faz aquilo, imitando os movimentos de quem sabe. Se atrapalhou toda a coitada, mas fez qualquer coisa parecida com o que deveria sinalizar. O que importa, afinal, é o tamanho do coração e a generosidade dessa mulher, que ensinam e orientam com sabedoria intuitiva a afilhada sempre que a situação assim exige.

O fato é que os pais nunca precisaram escalar seus reservas do batizado. Para sorte da humanidade. A menina cresceu com suas livres escolhas ou com as melhores decisões forçadas para driblar as adversidades que apareceram em seu caminho. É dotada de um senso de justiça e de uma racionalidade que fazem dela uma pessoa feliz. Que graça teriam esse aprendizado e essa concepção de gente, se não fossem os atropelos, improvisos e as tabajarices dessa nossa vidinha mais ou menos, não é mesmo? Vamos em paz e que o Senhor nos acompanhe!

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