14:53JAMIL EM SEU LABIRINTO

por Miguel Sanches Neto 

Durante anos, Jamil Snege (1939-2003) viveu esperando a hora de ser reconhecido nacionalmente. Dono de um estilo cuidadoso, contido e irônico, pertencia à família espi­ritual de Dalton Trevisan – de quem so­freu influência nos primeiros livros. Era um crítico refinado da cidade e um artista pronto para o exercício profundo da literatura, para a qual se sentia predestina­do. Enquanto os tempos de realização li­terária não chegavam, ia gastando seu talento na prática da publicidade, princi­palmente na desértica seara da política paranaense, sem se esforçar para fazer su­cesso nesse ramo do reclame, encarando-o como caso passageiro. Guardava-se para a mais que amada – a ficção.

Entre uma campanha e outra, com al­gum dinheiro no bolso, largava um livrinho magro e primorosamente produzido, que lhe rendia aplausos de um pequeno e fiel público, principalmente fora do Paraná. Mesmo esses opúsculos eram quase que arrancados do autor por amigos mais pró­ximos. Conhecendo sua pegada, todos esperavam seu grande livro. E ele dava amostras, tira-gostos.

Talvez a consciência da situação pre­liminar dessa produção não o tenha estimulado a procurar editora. Era um autor autoimpresso, como gostava de se ga­bar. Não queria entrar no mercado editori­al, ficava, desconfiado, à margem, atento ao leitor-amigo, correspondendo-se amo­rosamente como ele. Jamil não admitia in­termediários entre o livro e o público – ele mesmo fazia o projeto gráfico, editava e distribuía, dialogando com quem manifes­tasse interesse. Na sua agência de publi­cidade, a legendária Beta, guardava uma lista das pessoas que haviam recebido o presente – quem não respondia era defini­tivamente cortado. Ele reclamou mais de uma vez: os novos livros têm sempre me­nos leitores. E os volumes impressos res­tavam em caixas pelos corredores da agên­cia, esperando público.

Seus livros foram juntados – reu­niões de textos avulsos, acumulados ao longo de anos: A mulher aranha (1972), Ficção onívora (1978), O jardim, a tem­pestade (1989), Senhor (1989), Os verões da grande leiloa branca (2000) e Como tornar-se invisível em Curitiba (2000). Aqui, crônicas, contos e principalmente microcontos (com linguagem poética) apareciam como peças de uma obra sem identidade estilística ou temática. Da ex­perimentação ao texto místico, em tom de oração, o escritor testava seus instrumentos, tirando notas soltas. E caía em uma das armadilhas locais: o lance rápido, he­rança da lógica publicitária, como ele con­fessa em sua autobiografia: “Qualquer boa ideia deveria poder ser contida num co­mercial de 30 segundos”.

Mas havia outra vertente de sua obra: suas tentativas de articular um uni­verso de linguagem e de situações mais variado e mais rico. Seu primeiro livro foi o romance Tempo sujo (1968), nascido sob o impacto da ditadura. Embora tenha tido boa recepção, nunca chegou – e isso acon­teceu também com todos os outros – a ter nova edição. Depois, ele tentou o teatro com Asconfissões de Jean-Jacques Rousseau (1982), destilando pacientemente a autobiografia romanceada Como eu se fiz por si mesmo (1994).

O fechamento do relato é revelador: “Havia um rei, havia um reino; eu me errei”. Jamil Snege – tanto na publicidade quanto na literatura – seguiu propositalmente o caminho errado, recusando-se a qualquer tipo de pacto. Com essa primo­rosa autobiografia, ele enfim produzia um livro de peso, mas não se sentia intima­mente realizado, vendo-a como algo per­to da indecência, pois a escrita lhe tirava valiosas oportunidades de viver. Com segurança técnica para o grande roman­ce, ele tenta equiparar-se aos grandes ficcionistas, mas o que publica é uma novelinha deliciosa, em seu estilo humo­rístico, agora mais leve, mas não menos ácido – Viver é prejudicial à saúde (1998). E o voo do romancista é brusca­mente interrompido.

Quando per­guntado sobre o que estava escrevendo, falava de seu grande projeto, um roman­ce que transcorreria principalmente no século XVIII em Paranaguá, e anunciava o belíssimo título: O grande mar redon­do. Seria um épico, com densidade de lin­guagem e de visão de mundo. Mas nunca terminava o livro nem o mostrava a ninguém, embora tenha publicado dois tre­chos na antologia Encontro das águas (1994). Crescia a sua fama de mestre do texto e sua obra não a acompanhava – nos últimos anos escrevia apenas crônicas para a Gazeta do Povo. Foi nesta fase que ele conseguiu colocar seus livros em uma livraria em São Paulo e em uma distri­buidora do Rio, dilatando o círculo de lei­tores. Uma nova casa editorial propôs publicar toda a sua obra. O autor que nun­ca procurou editora nacional, era final­mente descoberto. Mas isso acontece na mesma época em que descobre o câncer que o mataria.

Antes, em 1993, em uma polêmica crô­nica dirigida ao crítico Wilson Martins, Jamil Snege lançava um desafio: “Arran­je-me um patrocinador. Uma entidade cul­tural – pública ou privada – que se dispo­nha a me oferecer uma bolsa de dois mil dólares por mês durante doze meses […]. Se ao cabo desse ano eu não produzir um romance ou novela tão bom quanto qual­quer Garcia Márquez, atestado por uma banca de reconhecida competência, restituirei integralmente os 24 mil dólares acrescidos de juros de 6% ao ano”. A fal­ta de uma estabilidade financeira proibia o grande romance. Um pouco antes de morrer, Jamil me passou os originais de O grande mar redondo. E me avisou, com toda a sinceridade que lhe era peculiar:

– Errei a mão neste livro. Ele está totalmente perdido.

Li e comprovei que ele tinha razão. O livro era um conjunto de textos desconexos. Conversamos sobre esse projeto um dia antes de sua morte. Ele queria ser um grande romancista, mas a província, sem nenhuma aposta em seus autores, fez com que sua vocação fosse gasta na profis­são errada. Sua obra forte e fragmentária é uma antecipação do grande romancista que ele poderia ter sido.

*Texto publicado em 1 de julho de 2005 na revista Capital

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