7:56Sobre o cocô

por Sérgio Rodrigues

O que a escatologia de Bolsonaro tem a ver com o fim do mundo

O elemento grego “skatós”, excremento, serviu de base no século 19 para a criação de diversas palavras eruditas e científicas em português. Escatologia é a mais significativa delas.

Além de “tratado acerca dos excrementos”, o dicionário Houaiss (de onde saíram todas as definições deste texto) traz a acepção pela qual a escatologia é mais conhecida: “ato ou fato de referir excrementos e imundícies afins em anedotas, expressões, escritos etc.”

Ou seja, escatologia é o recurso simbólico a dejetos e outras secreções anti-higiênicas, traço marcante da retórica de Jair Bolsonaro.

As inclinações escatológicas do presidente têm sido externadas com tanta regularidade que dispensam o colunista de coletar amostras para análise.

Recorrendo a outro cultismo derivado do grego “skatós”, podemos afirmar que Bolsonaro é um presidente escatofônico, cultor do “uso de palavras tabus, especialmente fecais”.

A montanha de referências a “excrementos e imundícies afins” (“golden shower” incluído) acumulada nos últimos meses sugere até um caso de escatocrasia, “incontinência de fezes”.

É verdade que, como se diz na língua de Trump —e a própria eleição do ogro racista de penacho laranja comprova—, “shit happens”. É um lance que rola.

Parece claro, porém, que daria alívio ao ambiente já poluído pela fumaça das queimadas o contingenciamento sanitário de excreções verbais desse tipo. Quem sabe dia sim, dia não?

O que a fixação escatológica revela sobre uma pessoa é tema para os especialistas nos meandros da mente. No entanto, a língua oferece algumas pistas aos que se disponham a farejá-las.

Um pendor escatológico muito acentuado pode ser sintoma de coprofilia, que o dicionarista define como “interesse psicopatológico por fezes de um modo geral, e especialmente sua associação ao prazer sexual”.

Nos casos mais graves, a coprofilia pode incluir a escatofagia, sinônimo menos usado de coprofagia, ou seja, “prática de comer fezes”.

Para maior clareza no debate, é importante explicar que, embora a escatologia seja mais conhecida com o sentido acima, um clássico mal-entendido linguístico a ronda. Ela também pode ter significado teológico.

Na verdade, não se trata de uma acepção diferente para o mesmo vocábulo, mas de outra palavra inteiramente distinta com a mesma grafia e a mesma pronúncia.

A escatologia do vocabulário teológico quer dizer “doutrina ou teoria sobre o fim do mundo e da humanidade”; e ainda “qualquer das diversas doutrinas cristãs concernentes à segunda vinda de Cristo à Terra, à ressurreição dos mortos ou ao Juízo Final”.

Trata-se de uma palavra nascida também no século 19, mas o elemento grego em que ela se baseia não é “skatós” e sim “éskhatos” (extremo, último).

Esse tipo de homografia não é tão raro na língua. O caso mais conhecido é o de manga, uma palavra de origem latina (“manica”) quando é de camisa e outra, importada do malaio, quando é fruta. Ninguém se confunde com isso.

Ocorre que, sendo vocábulos muito menos corriqueiros do que manga e manga, a escatologia fecal e a escatologia apocalíptica representam uma casca de banana e tanto. Difícil encontrar na língua portuguesa pegadinha tão traiçoeira.

Os mais pessimistas já sustentam, porém, que a distância semântica está encurtando e que as duas escatologias logo vão se encontrar e se fundir no fim malcheiroso dos tempos. Só nos resta torcer para que estejam falando merda.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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