8:01Contagem regressiva

por Thea Tavares

Na fila do caixa do restaurante: – Fulano, vamos falar de algo mais animador. Quanto tempo falta para você se aposentar? É pra acabar, né? Aprontei essa com um amigo porque sempre que a gente se encontra, na hora do almoço, o papo é a cena política nacional. No auge da desanimação ou da indigestão, um dos dois tenta desviar a atenção para temas menos letais à nossa sanidade mental e puxa outra coisa qualquer. Por isso é que já virou até piada essa tangente desastrada que eu peguei. Tiro no pé!

Acabou que o assunto descambou para eu ensinar duas pessoas a baixarem o aplicativo “Meu INSS” e simularem seus próprios infortúnios no celular. Até bem pouco tempo atrás, eu gostava de fuçar o aplicativo para calcular pelas regras que estão ainda em vigor e aparecia uma projeção de alforria qualquer. Não era das melhores, mas, para a Pollyanna aqui, já era alguma coisa palpável. Era! Resolvi “printar” uma simulação dessas, mesmo sabendo que tudo vai se bagunçar novamente com a reforma. Tenho lá no app da Previdência Social exatos 21 anos, 11 meses e 2 dias trabalhados e bem contribuídos pelo registro oficial, fora os bicos, trampos informais etc. Faltam outros nada exatos e bem prováveis de serem ilusórios 8 anos e 28 dias de labuta ou resta completar 15 pontos para alcançar os 71 a serem atingidos pela regra do fator previdenciário, sentenciada com base no cálculo da idade mais o tempo de contribuição. Contagem regressiva!

Para desespero completo, a tramitação dessa reforma que está no Congresso Nacional começou a correr mais que o Usain Bolt e não vai demorar também para a gente ouvir de um sorridente âncora de telejornal a “boa nova” de que terei de trabalhar mais ainda pelas novíssimas regras. Isso se a matéria não vier sadicamente colada à outra trombeta apocalíptica, anunciando os pavorosos indicadores do desemprego. Não fosse pelos efeitos da lei da gravidade, juro que teria desejado ter nascido uma década antes.

Embora seja um direito imprescindível e uma política social necessária, lembro bem quando falar de previdência ou de aposentadoria soava pejorativo para os machos-alfa de cabelos brancos. Orgulho besta de classe média para cima porque para o pobre, pobre mesmo, que nunca vai poder se dar ao luxo de parar de correr atrás do pão de cada dia, o pingadinho do benefício previdenciário sempre foi bem vindo, depois de arduamente conquistado. Mas havia um monte de preocupações bobas nos níveis mais elevados da pirâmide socioeconômica sobre o que seria da pessoa (e dos familiares em volta) quando se aposentasse, como sinônimo de parar de trabalhar: vai se deprimir, vai ficar doente, vai deixar a esposa doente de tanta incomodação, vai virar a casa de ponta-cabeça, vai morrer de tristeza o infeliz… e as lamúrias seguiam nesse embalo. Por que o estereótipo era justamente masculino? Por causa de outra convenção social que gostaria de ver superada: a de que a mulher não para de trabalhar porque está em casa. Mas nem vou me enveredar por esse debate aqui.

A aposentadoria que era vista como algo pejorativo no passado, agora é sonho de consumo. Se eu fosse dona de farmácia, seria a primeira a protestar na rua contra essa reforma que se desenha. Afinal, pra onde é que vai o dinheiro de quem se aposenta, senão pra comprar remédio? Aliás, você já reparou que as farmácias, antigas boticas, viraram mercearias, verdadeiras lojas de conveniência e grandes máquinas caça-níqueis? Você encontra de tudo, inclusive remédios, mas só se for até lá no fundo do estabelecimento. Tem de caminhar um eito para chegar até o ansiolítico, o protetor de estômago, o antibiótico, o corticoide… Portanto, convém só ir à farmácia atrás de medicamento no seu melhor condicionamento físico. Senão vai se perder ou dar uma de pau de enchente entre os produtos para cabelo, as vitaminas, as balas e chocolates, a geladeira de bebidas etc.

Quando encontrar meu amigo na hora do almoço, não vamos mais poder falar de política, muito menos de aposentadoria ou de drogarias quaisquer. Vamos ter de descobrir afinidades na literatura, na música, no futebol – sem polemizar sobre o V.A.R, a forma que encontraram de tornar inútil xingar a mãe do juiz pelo resultado da partida… Enfim, vamos falar de qualquer coisa que nos abstraia ou nos abduza desses tempos insanos. Não tá fácil a vida do gaiteiro! Brinco sempre também que mais uns anos de serviços prestados e de esgotamento, a gente vai dar aposentadoria ou usurpar o lugar do Zé da Bíblia na Praça Nossa Senhora da Salette. Vamos disputar a tapa essa função! Tomara que tenhamos as mesmas disposição e oratória.

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Uma ideia sobre “Contagem regressiva

  1. Simone Belquis Barbosa

    É bom mesmo não abrirmos mão do bom humor diante das falsetas que a humanidade nos tem arranjado. Amei!!!

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