5:36O exorcista

por João Pereira Coutinho

Tarantino sempre gostou de recuar na história para corrigir os seus pecados

Viver na Califórnia nos loucos anos 1960. Parece uma proposta irrecusável, certo?

Errado. Pelo menos, se acreditarmos no ensaio de Joan Didion, “The White Album”, que praticamente fixou a época para a posteridade.

Entre 1966 e 1971, altura em que a escritora morou em Los Angeles com o marido e a filha, havia uma estranha atmosfera no ar: uma mistura de ansiedade e paranoia que normalmente prenuncia tragédias mundanas.

Tudo era possível —“é proibido proibir”, para citar o bordão dos revolucionários em Paris, no Maio de 1968— o que significa que nada era impossível. Nem sequer o crime.

Na sua casa, sempre habitada por amigos e desconhecidos, Didion recorda que nem sempre sabia quem ocupava os quartos.

Esse fluxo anárquico, narcótico, festivo, também podia ter momentos mais sombrios: quando os médicos lhe diagnosticaram esclerose múltipla, a doença era o menor dos seus problemas.

O que assustava realmente Didion era a possibilidade de abrir a porta e um desconhecido entrar com uma faca. Já tinha havido sinais. A festa convivia alegremente com a insanidade.

Joan Didion foi poupada a esse destino. O mesmo não aconteceu com Sharon Tate, a mulher (grávida) de Roman Polanski, brutalmente assassinada por membros da “família Manson”.

Joan Didion recorda esse dia 9 de agosto de 1969, quando as notícias do massacre se alastraram pela “comunidade”. Comentário dela? Ninguém ficou surpreendido. “A tensão desfez-se naquele dia. A paranoia cumpriu-se.”

O ensaio de Joan Didion voltou ao mundo dos vivos por causa de Quentin Tarantino e do seu “Era uma Vez em… Hollywood”. É óbvio que Tarantino leu Didion e concorda com ela. Parafraseando Talleyrand sobre a França pré-1789, a vida era doce em Hollywood antes da contracultura e isso se vê em cada fotograma.

Verdade: Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), antiga estrela de westerns televisivos, teme o fim prematuro da sua mediana carreira. A angústia do personagem, sobretudo quando ele a expressa em diálogo com uma atriz mirim (espantoso momento), é pungente de ver.

Mas é um temor racional, que pode ser racionalmente suplantado se ele deixar a bebida e se entregar à sua arte. O que acontece, por momentos.

Além disso, Dalton tem ao seu lado Cliff Booth (notável Brad Pitt), seu dublê nas filmagens e amigo inseparável fora delas. Ambos circulam pelas ruas de L.A., escutando os temas clássicos da era e desprezando os hippies imundos que infestam a paisagem.

Quentin Tarantino é um reacionário estimável. Uso a palavra com todo o respeito —e todo o rigor. O diretor sempre gostou de recuar na história para corrigir os seus pecados, permitindo que a “idade dourada” possa continuar imperturbável.

Em “Bastardos Inglórios”, isso era explícito, com o extermínio da cúpula nazista (Hitler incluso), o que sem dúvidas teria poupado o mundo aos horrores conhecidos.

“Era uma Vez em… Hollywood” segue o mesmo programa: e se a seita de Charles Manson tivesse sido tratada com a violência exemplar que ela merecia?

Dito e feito: o que começa por ser um aperitivo —a violência ministrada por Cliff, na visita acidental ao rancho da seita—  termina com um festim (e um mastim) na horrenda e hilariante sequência final.

Tarantino parece dizer-nos: com a família Manson fora da paisagem, a doçura da vida teria continuado —e até Sharon Tate, que representava o lado solar da contracultura, teria acolhido nos seus braços o velho mundo representado por Rick Dalton. Amigos para sempre.

Fatalmente, e como sucede nas fantasias nostálgicas, elas apenas contam metade da história.

Como esquecer que a “doçura da vida” era manchada por uma guerra distante que devastava uma geração inteira?

Como esquecer a paranoia “institucional” que Joseph McCarthy promoveu na sua caçada a comunistas, reais ou imaginários, nas infamantes audições?

Que dizer do assassinato de Kennedy, do irmão Bob, ou de Martin Luther King?

E, sobre o cinema propriamente dito, sei que havia Hitchcock, Minnelli ou John Ford em atividade (para mim, um trio sagrado).

Mas quem prefere “As Minas de Salomão” ou “A Volta ao Mundo em 80 Dias” (dois sucessos dos anos 1950) às obras dos “touros indomáveis” que nasceram da contracultura e que ofereceram ao cinema americano uma das suas melhores décadas —a de 1970?

*Publicado na Folha de S.Paulo

 

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Uma ideia sobre “O exorcista

  1. Anônimo

    Excelente dupla: Tarantino e João Pereira Coutinho. Obrigado, Zé Beto, pela aula de história e cinema destes grandes mestres.

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