7:34O glossário do Pinhão

por Thea Tavares

Se você vai pela primeira vez a Pinhão, na região Centro-Sul do Paraná, e não quer parecer um forasteiro e nem pretende chamar a atenção com uma entrada épica, igual a de um certo Capitão Rodrigo, chegando ao povoado de Santa Fé no romance de Érico Veríssimo… Se quiser se misturar à paisagem, comece aprendendo o glossário local. Tem palavras e expressões que você ouve lá, importadas ou não, mas elaboradas com muita lógica e inventividade, que, quem é de fora tem de se espichar para treinar o ouvido e aprender a usar.

Aqui vão algumas pequenas dicas! Claro que este ensaio é só um começo de prosa mesmo sobre o tema, feito apenas com o que trago de memória imediata. Com certeza, o repertório vai muito mais longe. Rende uma “Barsa” de conteúdos. Então, para se misturar e fingir que não é de fora, se puder agregar uma entonação gaudéria, vai ficar mais fácil de alcançar o intento. Tem muito gaúcho perdido ou achado por aquelas bandas.

Já chegue em uma reunião ou num local cheio de gente, distribuindo a saudação: “boa tardarada pra tudo vocês, pareio no quatro cantos!”. Se o encontro for de manhã, é “bom diarada”, se for à noite, “boa noitarada”. E tem de ser “pareio” (ou parelho, ou seja, em partes iguais) nos quatro cantos, que é pra não deixar ninguém de fora do cumprimento ou se sentindo desprestigiado.  Você não quer chegar comprando briga ou magoando ninguém, não é mesmo? Até porque você não passa nem perto de ser um certo Capitão Rodrigo, como o personagem do romance, retratado na telinha da Globo pelo Tarcísio Meira. Está mais para Galvão Bueno, então, melhor tomar tento.

Vamos pra frente! O povo do Pinhão é muito dado, apesar da fama de antiga terra de pistoleiro, em que tudo se resolvia na bala e os mandachuva locais pegavam ou tocavam as pessoas a cachorro e na base da aneaça para expulsar de suas terras, o povo de lá é alegre e está sempre buscando viver mais e melhor, sempre se desafiando e superando obstáculos. Um ex-radialista do Pinhão – ele mesmo se autoproclamava de “radiador”, se bem que, dono de uma alegria transbordante, poderia ser também conhecido como irradiador – tinha um bordão que usava até gastar nas suas locuções. Era o “bão também”! Cada vez que ia mudar de prosa, começar um assunto novo, ele mandava um “bão também” para os ouvintes e bola pra frente. Largava os “bão também” como respirava e já nem percebia o cacoete. Certa vez, inventou de mandar o bordão logo após rolar a gravação do obituário do dia. Quando acabaram de dizer “o corpo está sendo velado na capela mortuária e blá, blá, blá”, ele soltou mais arrastado que o normal: “bããão também”! Achei aquilo engraçado, mas não sei dizer como foi a recepção dessa audiência na família do morto. Até explicar que focinho de porco não é tomada, a treta já corria à solta.

Não cheguei a conhecer, no tempo em que passei por lá, a comunidade de “Faxinal dos Coutos”. Nem sei dizer que foi o Couto que deu o nome para o local. E não foi por falta de curiosidade. Mas, aqui vai outra dica, se você for procurar, não pergunte pelos “Coutos”, que não vai chegar na localidade. A pronúncia que se popularizou chamar por lá é “Faxinal dos Coito”. Agora, você ficou curioso, né, safadinho? Nem confunda com “bar de muié”, que na cultura machista e misógina do desrespeito e da exploração da miséria, se convencionou chamar assim os ambientes que vendem a cerveja com valor agregado, se é que você me entende…

Tem muito, mas muito mais coisas pra contar do Pinhão. “Degavarinho, degavarinho” (essa é emprestada lá dos Pampas), a gente vai lembrando… Nunca vou conseguir recuperar todos os verbetes e expressões, até porque eles surgem espontaneamente a todo o momento e isso exigiria um estudo acadêmico aprofundado de linguística. Mas não se apure, não tem tanta “percisão”, no sentido de não ter agora essa necessidade da gente atropelar as ideias.

Mas é com muito carinho, respeito e gratidão por aquela gente boa do Pinhão, que vasculho na memória emocional essas referências. O povo é criativo demais e vai inventando palavras e se apropriando delas no dia a dia, numa velocidade impressionante! Aquilo é passado adiante, numa aceitação imediata, quase que como gesto de reconhecimento e, quando menos se espera, já viralizou, caiu no gosto popular. Ouve-se uma vez e, pelo contexto da conversa, dispensa explicações sobre o significado. Assim como as crianças de hoje já nascem sabendo mexer na tela do smartphone, os pequenos pinhãoenses também têm sua formulação própria de vocabulário que parece que nasce com eles. Lembro de uma menina, tinha uns três aninhos na época, que reclamou pra tia e para a avó que a priminha não estava dando bola pra ela e só tinha olhos e atenção para a nova coleguinha da escola. Às lágrimas, ela reclamou que a garota estava “se ametidando”. Ninguém tinha ouvido aquilo antes, mas todos compreenderam perfeitamente a situação e se divertiram com a inventividade encantadora e prática da criança.

A simplicidade é tanta e é tão espontânea, que não tem como não sorrir, se divertir ou se envolver com aquela vida leve, de um povo que carrega uma história de lutas e de muita resistência. Por isso é que a suavidade do modo de vida não pode jamais ser confundida com alguma passividade, que tanto presta favores à servidão. Assim como o Sudoeste do Paraná teve no final dos anos 50 a revolta dos colonos, contra a expropriação de terras por empresas colonizadoras, o Pinhão, nos anos 90, viveu o traumático conflito dos posseiros frente a uma grande madeireira exploradora da região. O fantasma daquele impasse até hoje assombra centenas de famílias de posseiros do município e vive produzindo episódios escabrosos. Mas o povo não se intimida, não desacorçoa.

Mesmo esgualepado da batalha, segue inventando uma maneira leve e delicada de demonstrar força, que é vivendo, sorrindo, aprendendo, teimando. Não tem nada mais desafiador e subversivo do que se achar no direito de construir uma realidade diferente e ser feliz a cada conquista. Mesmo que dure tão pouco a felicidade do pobre, esse sentimento continua sendo só dele, que encontra milhares de formas de contar pra gente e de nos ensinar a sermos resilientes, receptivos e generosos como o povo do Pinhão.

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