7:18Everest, 2019

por Fernando Muniz 

“Trezentos metros. Só mais trezentos metros”. O alpinista checa os cilindros de oxigênio; em ordem. Agasalhos; ainda em ordem. Botas; tudo em ordem. Olha o céu e percebe ter aberto uma janela entre tempestades, com o sol, forte, iluminando as encostas. Hora de apertar o passo, assim como os outros alpinistas. Muitos; uns cento e cinquenta se preparam para atingir o cume, formando uma fila, surreal, a quase nove mil metros de altura, agarrados a uma corda de segurança que impede a ventania de os levar.

“Mais duzentos e cinquenta metros”. Começa a ter medo; todos os meses de preparo físico e mental não o condicionaram a ficar ali, em uma fila, espremido entre estranhos e à beira de despenhadeiros tanto em sua direita como na sua esquerda. Pensa ser uma boa ideia ultrapassar do seu próximo, um rapaz ofegante, que avança a passos lentos. Leva uma cotovelada e quase cai para trás; é empurrado de volta pelo alpinista que o segue, carrancudo, a soltar uma enxurrada de palavras. Não consegue entender o que ele diz; ninguém consegue se entender, aliás. Cansaço, egoísmo, pouco oxigênio e excesso de luz.

O sol continua a bater forte, apesar de já ser quase oito da noite. O frio aperta; menos 30° C. O rapaz à sua frente não resiste e tomba para a direita; os que vêm atrás gritam para alguém soltar o mosquetão do morto e liberar a corda de segurança, pois o peso dele atrapalha a todos. Quem estava à sua frente faz isso, aproveita e apanha a sua garrafa de oxigênio. Em instantes a neve não deixa vestígios do episódio.

A duzentos metros do cume o alpinista estanca. A fila para de se mover; é preciso dar espaço a quem desce. Ele pensa em aproveitar a onda e voltar. Mas depois de ter passado por tudo aquilo, não atingir o cume da montanha? Nem pensar; se aqueles tantos alpinistas aguentam, ele também consegue.

A penúltima garrafa de oxigênio acaba, a cem metros do cume. Ele não sente a mão direita; estranho, pois checou todo o equipamento antes de subir e as roupas isolantes estavam em ordem. Enxerga o cume e quem está lá. Posam para fotos de si mesmos, nos poucos instantes em que os demais permitem, antes de serem arrancados dali, sem pausa para meditar ou sentir a alegria por aquela vitória sem sucesso, dividida com quem só pensa na sua vez de pisar no topo do mundo.

Parado enquanto aguarda a fila andar, tem uma sensação de completude, que o faz esquecer as cotoveladas, os gritos insólitos de alegria ou desespero e os alpinistas mortos, justificando cada centavo daquela imprudência de milhares de dólares.

Respira fundo pela máscara e o súbito pico de oxigênio o mantém desperto; admira a vista ao redor, belíssima, com o sol a lamber os contornos da montanha, apesar de as cores berrantes dos agasalhos, que abrem uma ferida naquela imagem, salientarem o quão ordinário esse momento se tornou.

Uma calma profunda o toma de assalto, a ponto de não sentir os empurrões de quem vem atrás. Não quer ir embora; ali está bom.

E ele tomba.

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