9:43O inferno que veio do frio

por Nilson Monteiro

Escorado em seu cigarrinho de palha, os olhos ainda molhados, ele murmurou palavras embaçadas pelo fumo e pela geleira da manhã: “O céu tava azulzinho. De repente, no final do dia, ficou vermelho. Ai virou o inferno.” O agricultor, como milhares, não queria acreditar no que vivera na madrugada anterior, quando os termômetros chegaram aos 3,5º negativos e o vento cortante queimara o café do mapa do Norte do Paraná de forma impiedosa. Londrina acrescentara naquela quinta-feira, 18 de julho de 1975, mais uma cicatriz gelada, a quinta, em sua história de quatro décadas e de liderança regional fomentada pela cafeicultura.

Esta história começou em 1910. O major Antônio Barbosa Ferraz Júnior e seu filho Leovegildo esticaram os olhos para o colchão de terra roxa (formado por derrames basálticos) para além de Jacarezinho. Venderam uma grande fazenda na região de Ribeirão Preto (SP) e compraram uma extensa gleba, com 2.582 alqueires, na fronteira de São Paulo com o Paraná, entre Ourinhos e Cambará, à qual deram o nome de Fazenda Água do Bugre. Derrubaram a mata e plantaram um milhão de pés de café, que, anos depois, se transformaram em um mar verde indicando a necessidade de esparramar-se sertão adentro, assim como da ferrovia, que havia chegado a Ourinhos, esticar seus trilhos em direção a este novo pedaço de riqueza para transportá-lo ao porto de Santos.

Em 1924, o inglês Simon Joseph Fraser, conhecido como Lord Lovat, diretor da Sudan Cotton Plantations Syndicate que viria a organizar a Companhia de Terras Norte do Paraná, visitou a Água do Bugre e antecipou o desejo de disseminar outra cultura – o algodão – na margem esquerda do Paranapanema. Seus olhos de técnico em agricultura e reflorestamento brilharam com a potencialidade da terra para o plantio de algodão, que os ingleses importavam em larga escala para sua florescente indústria têxtil. A CTNP comprou 515 mil alqueires na margem paranaense do rio.

Em 1930, um grupo de onze japoneses, liderados por Hikoma Udihara, foi o primeiro a comprar lotes rurais em Londrina, perfazendo 700 alqueires, dispostos a plantar arroz. Os ingleses vieram cultivar algodão e os japoneses, arroz. Todos repararam, embora não tivessem abandonado seus planos iniciais, que era mais rentável plantar café.

Em 1975, a história pouco importava ao dono do cigarrinho de palha e às suas mãos calosas, que eram as mesmas de outras 900 mil pessoas entre trabalhadores rurais e suas famílias que dependiam diretamente daquela planta e seus grãos. As quatro cicatrizes geladas anteriores queimaram, em maior ou menor intensidade, a produção cafeeira regional que fez do Paraná, entre 1950 e 1970, o primeiro produtor do grão no país, com os cafeeiros chegando a cobrir mais de um milhão de hectares, responsáveis por mais da metade da produção nacional.
A ele, que pisava comigo o chão parecendo cristal e a relva que sentiu na madrugada os rigores de 10 º negativos, pouco parecia importar o fato de o café ter sido o responsável pela explosão econômica de Londrina. O café movimentava freneticamente as ruas londrinenses e de toda a região, naquela manhã cobertas de asfalto, medo e esperança. As mesmas ruas antes enlameadas e empoeiradas da mesma terra roxa que se abriu para receber a grande riqueza, religiosa e anualmente ameaçada pelos termômetros. A cidade tinha, então, quarenta anos e ainda tremia de medo quando uma tira escarlate tingia o horizonte como aconteceu no fim da tarde do dia 17 de julho, depois de uma chuvinha. Os termômetros e o céu límpido tingido de vermelho trouxeram trágicas recordações aos moradores da cidade, dos sítios e das fazendas vizinhas.

Em 1953, atravessando o que se chamou de os “anos de ouro do café”, a cidade se viu invadida por uma enchente de bordéis de luxo e clubes de jogo, atestado da loucura financeira que Londrina e aqueles que a procuraram para viver atravessavam. Na época, dois tradicionais senhores da terra, Lucílio de Held e Adelino Boralli, lotearam uma parte da cidade destinada a ser o grande bairro de luxo de um município luxuoso: o Jardim Shangri-lá. A propaganda foi intensiva junto às ricas famílias da região para que adquirissem os “magníficos lotes” do Shangri-lá, abandonados logo após a grande geada do ano, que queimou os pés de café e a economia regional.

Londrina saboreava, com tudo a que tinha direito, os áureos tempos: seu aeroporto era o terceiro do país em movimento, com aviões da extinta Companhia Real pousando cheios de mulheres “importadas” do Rio e São Paulo. Os aviões receberam o mesmo apelido das charretes que trabalhavam na zona: “Balaio de puta”. Elas chegavam geralmente na sexta-feira e iam embora na semana seguinte, trabalhando em casas onde se acendiam charutos em cédulas de dinheiro graúdo. A “zona” londrinense chegou a ter mais de cem casas.

A cidade teve que engolir, em 1953, o gosto amargo de sua primeira cicatriz gelada, sem o produto que levou o país às alturas no mercado internacional. Mal estava curada esta ferida e novamente, dois anos depois, o Norte do Paraná amanheceu gelado, com os cafezais queimados por outra geada. Contam que quando o céu avermelhou em 55, os fazendeiros saiam para a avenida Paraná, símbolo do formigueiro humano que foi se juntando em Londrina, e diziam laconicamente: Frio? Que frio nada! Tem nada de geada não!

E teria. Os negócios simplesmente desapareceram da antiga “pedra” em frente à Brasileira (Lojas Hudersfield), onde eles se reuniam e concluíam suas transações abençoadas pelo café. Há lendas que se confundem com histórias, como a do fazendeiro que morreu abraçado aos galhos gelados e torrados de um cafeeiro. Mas, há muitas histórias reais de suicídios e de abandono à vida.

Em 1963, os céus trouxeram os mesmos e conhecidos prenúncios. Os fazendeiros vestiam os pulôveres ao avesso para espantar o frio e a branca. De nada adiantaram as simpatias e a geada escureceu os cafezais e as esperanças. Novamente em 1969 (após o Estado ter sofrido uma grande queimada, no período intermediário entre duas geadas), mais uma dolorida cicatriz gelada ficou assinalada nos gráficos econômicos paranaenses e em sua gente.
Nas quatro cicatrizes que antecediam ao meu encontro com o lavrador e seus olhos embaçados, consta que era comum esbarrar-se em tristes cidadãos, principalmente em 1955, em mangas de camisa, andando pela avenida Paraná e derramando inconsoláveis lágrimas. A cidade foi se recuperando, adulta que é, das suas quatro infelicidades anteriores, rezando para que o céu gelado e anil nunca mais tivesse uma tira escarlate.

Como a que apareceu naquela quinta-feira, 17 de julho de 1975, no finalzinho do dia, quando os termômetros lambiam os quatro graus positivos. As temperaturas mínimas em Londrina em anos de frio rigoroso ameaçavam: 2 negativos em 1955; zero grau em 63; um negativo em 65; zero grau em 69 e o mesmo em 72. No fatídico 17 de julho, o céu tingiu-se de uma cor temida na região. Geada? O cidadão na avenida Paraná pensa, o cigarro dança, depois de um gole de café quente, em sua boca curtida. Ele esfrega os olhos, esfrega as mãos, pede aos céus: Geada? Que nada! Só um friozinho!

No outro dia, os jornais fizeram as contas: foram 850 milhões de pés queimados. Um homem cuida em média de três mil pés. Se forem erradicados 400 milhões de cafeeiros no Estado, 150 mil trabalhadores, a maioria “bóia-fria” (na época de ouro do café predominavam as colônias nas fazendas. O bóia-fria surgiu em consequência do êxodo rural por causa das geadas anteriores. A de 75 foi o golpe fatal), ficaram imediatamente sem emprego. A erradicação foi muito maior e o campo despejou três milhões de paranaenses nas cidades e em busca de outras fronteiras agrícolas.

O então governador do Paraná, Jayme Canet Júnior, um grande cafeicultor no Norte Pioneiro, sobrevoou e depois visitou, in loco, as lavouras torradas. Viu a desilusão nas sedes das propriedades rurais e o desespero de quem, com as próprias mãos, começava no final daquela manhã a arrancar os cafeeiros queimados para depois ser demitido das fazendas. Anos mais tarde, Canet, durante uma entrevista, emocionado, chorou, sem conseguir terminar a frase sobre “a dor que eu senti junto aos produtores e aos trabalhadores nas fazendas”. O Paraná não colheu um só grão de café em 1976.

Pouco mais de vinte anos depois da quinta cicatriz gelada, uma nova cafeicultura desenvolveu sua timidez no mesmo torrão roxo, com um nome pouco comum ao leigo: café adensado. Nem pensar no mar verde na região nascido pelas mãos de Barbosa Ferraz. São pequenas manchas, hoje pouco mais de 69 mil hectares em território paranaense, que convivem com outras culturas, quase sempre nas beiradas de um mundão de soja. Londrina e toda a região se adaptaram a um novo tempo econômico, social e cultural.

E a lembrança das ondas dos cafeeiros de horizontes infinitos, com seus braços carregados de delicadas flores brancas espalhando perfume ao longo dos quilômetros, me abraça, em meio a um carreador enlutado, na figura do agricultor de olhos molhados e seu cheiro de fumo de corda: “O céu tava azulzinho. De repente, no final do dia, ficou vermelho. Ai virou o inferno.”

*Texto publicado na revista Helena em 2012

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5 ideias sobre “O inferno que veio do frio

  1. SERGIO SILVESTRE

    Na década de 60 os cafezais que mais pareciam pés de laranja pela sua altura produziam até 4 sacas de 55 litros por unidade,mas junto dessa riqueza veio também as quengas de toda parte do Pais,algumas francesas.
    Londrina era a capital das charretes,as quengas lotavam os salões de beleza para se doar a troco de maços de abobrinhas(nota de mil da época) e eles terem suas noites felizes depois de conferir as tulhas super lotadas de café.
    Muitos desses fazendeiro se apaixonaram pelas quengas,levaram muitas delas para suas grandes fazendas e lá tiveram filhos e esses felizes senhores sua diversão.
    O caso ficou incontrolável a ponto do arcebispo da época,Don Geraldo Fernandes intervir com uma reunião de ricaços com suas esposas e convence-las de que isso era uma normalidade até para seu casamento perdurar.
    Com isso e com aceitação das esposas,esses filhos concebidos pelas quengas nas fazendas,foram incorporados as famílias tradicionais e se tornaram herdeiros de grandes fortunas.
    Com isso nesses tempos atuais,temos aqui na cidade muito desse ricos sortudos que na verdade eram todos filhos das putas que os pariram .
    Essa é uma história que muitos não gostam de contar,mas é a realidade de uma elite poodle que rota uma decência que não sabemos o que eles fizeram entre quatro paredes em calidas noites de verão.

  2. Beto

    O paradoxo do café no Brasil
    04/06/2019 Paulo Gala

    *escrito com Felipe Augusto Machado

    Segundo materia recente do Financial Times os cafeicultores recebem apenas 0,4% do valor do café consumido. O preço do grão, cotado em NY, atingiu em 2019 o nivel mais baixo em 10 anos, porque o Brasil, principal produtor, está colhendo uma supersafra. O Brasil se especializou no elo mais fraco da cadeia de valor do café. Países especializados em commodities são tomadores de preços. É definido em Bolsas. A oferta não se ajusta rapidamente à demanda. Há volatilidade. Seu mercado se aproxima da concorrência perfeita. O produto é homogêneo. Há baixa diferenciação por marcas e P&D é pouco relevante. Já os torradores recebem 80% do valor do grão. A atividade requer P&D e know-how p/ harmonizar os sabores ao gosto dos clientes. Concorrência é imperfeita: o top 10 atinge 35% do mercado mundial. Há diferenciação por marcas: Nestlé e Starbucks entre os maiores. O Brasil inexiste!

    A mais recente fábrica da Nespresso construída na cidade alemã de Schwerin representa um dos maiores investimentos feitos no setor nos últimos anos. A escala de produção e a localização da cidade de Schwerin no centro da rede consumidora europeia tornam a competição para empresas brasileiras muito difícil. Na fábrica, os 350 empregos gerados pagarão salários interessantes e adicionarão ainda mais riqueza a região. O saco de café de 60kg que sai no Brasil a R$400 ou seja, R$6,6 o quilo, se transforma numa cápsula que é vendida no varejo por R$400 o quilo. O preço remunera a construção da fábrica e gera um fluxo de salários (e “produtividade”) lá bem maior do que aqui. Depois a cápsula é reexportada para o Brasil e vendida por um preço 70 vezes maior do que o preço de saída. Aqui um lojista no Brasil ganha um salário baixo de serviço não sofisticado para vender a cápsula. O “barista” consegue ainda adicionar algum valor para tentar vender o produto um pouco mais caro. O ciclo de pobreza e riqueza do café se fecha então. Quem ganhou dinheiro mesmo foram os alemães e suíços que “processaram” o café.

    Artigo na integra: https://www.paulogala.com.br/o-paradoxo-do-cafe-no-brasil/

  3. Beto

    Cafe em nossa historia:

    O Brasil é café; sem café não teríamos nos industrializado e São Paulo não seria São Paulo. Talvez outra commodity tivesse desencadeado nossa industrialização como foi o caso do algodão do sul americano para a indústria que surgiu na nova Inglaterra a partir dos serviços de transporte (NY, Filadelfia, Baltimore e Boston) para as tecelagens inglesas (ver aqui). Mas fato é que devemos nossa configuração espacial e econômica principalmente a essa planta: o café. E hoje, como esta esse mercado? Dos 60 milhões de sacas produzidas por ano no país, 20 milhões são consumidos por aqui e o resto exportado. O Brasil segue sendo o maior exportar do mundo (gráfico acima) logo a frente de Suíça e Alemanha. Suíça e Alemanha? Sim, apesar de não plantarem um único pé de café, dominam parte relevante do mercado de café no mundo. Em termos de cápsulas e extratos, aparecem em 2014 como exportadores relevantes também. O mercado de cápsulas ilustra bem a pobreza do Brasil em termos de capacidade de adicionar valor aos seus produtos básicos e subir na escada tecnológica rumo ao desenvolvimento econômico.

    Artigo na integra: https://www.paulogala.com.br/o-paradoxo-do-cafe-no-brasil/

  4. Parreiras Rodrigues

    Quando instalou-se a Indústria da Mudança. Carroçaria de caminhões levando famílias inteiras para Rondônia, para os dois Matogrosso, para o Interior paulista, para Curitiba e RM e para o Paraguai. O Noroeste abrigava mais de 50 por cento da população paranaense. Hoje, pouco mais de 10. Maria Helena contava 40 mil, hoje, 10 mil. Tamandaré não tinha 20 mil, hoje, Beira 200 mil.

  5. marcio

    Sabem o porquê do soja ter dado certo e o café não? Simples, o soja não teve criada uma Sojabras e o café teve o IBC.

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