7:19Qual é a boa?

por Thea Tavares

Informação para qualquer profissional da comunicação social é matéria-prima. O noticiário, nossa fonte inesgotável de assuntos selecionados, fáceis e prontos para o consumo instantâneo. Mas não é de hoje que temos também a necessidade de desopilar, desintoxicar, espairecer. Ao lidar com essa carga pesada a todo momento, é preciso buscar válvulas de escape e exercitar de tempos em tempos a abstração, o descarrego. É preciso espairecer e renovar as baterias. Está no nosso manual de sobrevivência diante desse “mundo cão” em que a realidade se transformou e é retratada nos noticiários.

No final da semana que passou, vi nas redes sociais um vídeo do jornalista Luiz Ribeiro, desejando um bom descanso a todos os seus seguidores, de preferência, longe das notícias e com o cuidado de se desligar dessa realidade que assombra para dedicar atenção àquela que  a gente constrói nos nossos momentos de lazer, com a família, com  os amigos e se reconectando com a nossa própria essência, a bem do tal do autoconhecimento. No mesmo dia em que vi o vídeo do colega, algumas horas mais tarde, me peguei constatando o quanto deveria ter seguido imediatamente seus conselhos.

Passava o Jornal Hoje na TV, quando indiquei para uma jovem estudiosa das relações internacionais que ligasse o aparelho e acompanhasse a notícia sobre o impasse com os navios iranianos que a Petrobras se negava a abastecer com medo de sofrer sanção do governo norte-americano. Era uma notícia completa e bem contada. A moça domina o tema e sempre me indica informações que encontra por aí sobre ele. Achei por bem dar esse toque. Foi a primeira manchete anunciada pelo programa. Corri para avisar, acreditando que também seria essa reportagem a que abriria aquela edição. Completo engano!  Até que a notícia surgisse na tela, 14 minutos depois do início do telejornal, a pessoa teve de saber que uma quadrilha furtava equipamentos de endoscopia de um hospital em Londrina, que no interior do Ceará um médico (e prefeito afastado) estava sendo acusado de estupro por suas pacientes-vítimas, que um brasileiro praticou feminicídio e matou a ex-mulher a facadas na Inglaterra, no meio da rua, o que foi presenciado por uma das filhas do casal e por moradores da localidade.

Também teve de consumir alguns minutos da visão do louco que preside o País, justificando o nepotismo como sendo a oportunidade de alimentar com filé mignon seu filho, para representar lá fora uma nação em que, segundo ele, ninguém passa fome. Por sorte, a jovem não ligou a televisão antes da minha desastrada indicação, senão saberia que uma mulher de Guarapuava foi condenada a pagar indenização de R$ 25 mil ao dono de uma cachorrinha que ela matou a pauladas e que um homem foi flagrado por câmeras de segurança de um bairro em Curitiba atirando chumbinho para envenenar e matar cachorros. Isso que nós nem chegamos a mencionar as atualizações das redes sociais ou a visão do inferno que se obtém vasculhando nos comentários das notícias postadas em sites jornalísticos.

É claro que essas situações são noticiadas porque de fato aconteceram, mas também é público e notório que a importância e o espaço destinado a esses espetáculos bárbaros, descritos como fatalidades ou maldades pura e simplesmente, contribuem para anestesiar e distrair nossa atenção do que realmente importa ou para ditar prioridades na nossa vida. E tem muita coisa importando ultimamente, que passa batido no noticiário de algumas emissoras, diga-se de passagem. Também não chegamos nos programas policiais de fim de tarde que as pessoas consomem em pânico e depois têm vontade de se armar até os dentes ou aumentar a maioridade penal no dia seguinte. Essa audiência se torna presa fácil de uma manipulação moralista.

Conto sempre uma situação que me marcou muito: um formando de jornalismo, há quase uma década, relatou que convivia com um parente em quadro grave de depressão. Antes de sair para a faculdade e assim que voltava para casa, sua tarefa número um era esconder jornais diários e revistas semanais ou impedir ao máximo o acesso do doente ao noticiário, porque tudo o que lia e escutava nos veículos só aumentava o drama da família. O sofrimento do rapaz crescia em progressão geométrica quando lhe caía a ficha de que se preparava para atuar profissionalmente e sobreviver das notícias que tanto tinha de esconder de uma pessoa que se definhava em depressão.

Ele encontrou um jeito de aplicar seu conhecimento em algo que o realizasse mais que o simples e digno trabalho de reportar os fatos. Hoje, é um dos grandes profissionais que respeito no jornalismo investigativo e, fora dos refletores, um ativista dos direitos humanos por engajamento social. Tem o cuidado e a sensibilidade de não apenas selecionar bem sua pauta, como sempre se colocar no lugar de quem vai receber a notícia, por pior que ela seja, de forma humanizada. Guardo profunda gratidão por esse tipo de compromisso. Comunicadores são gente e por isso a preocupação com o bem estar das pessoas e da comunidade. Melhor que ninguém, sentem o impacto do “quanto pior, mais vende” no acúmulo do dia a dia.

Se para uma pessoa saudável a realidade soa insuportável e é necessário filtrar criteriosamente as informações para absorver apenas o que faz bem ou o que é necessário saber para transformar, mudar a história etc, para quem está fragilizado, o impacto é nocivo, brutal, cruel. Também não se trata de camuflar, encobrir, desviar o olhar, omitir-se. Por exemplo, dizer que o flagelo da fome não existe no nosso naturalmente abundante Brasil, não alimenta automática e milagrosamente as pessoas que sofrem ou morrem de desnutrição todos os dias. Desconsidera e disfarça a desigualdade que tanto caracteriza a nossa sociedade. E quando essa informação falsa parte justo do chefe de estado, que tem a responsabilidade institucional de assegurar o direito social do seu povo, o descaso – não acredito que seja só fruto da ignorância – é criminoso, é maldade. Mas o que fazer?

A pergunta por si só é uma luz no fim do túnel. É nessa busca de soluções ou de alívio que a gente encontra forças e ânimo pra tocar adiante. As injustiças que nos abatem e causam indignação também nos movem. Assim, de vez em quando, a paradinha estratégica para recarregar as energias é fundamental, necessária até e areja as ideias.  Aos profissionais, comunicadores sociais que narram e contam a realidade, resta voltar dos finais de semana prontos para outra jornada, munidos do compromisso de noticiar os fatos e apurar sempre as razões, responsabilizações e alternativas, de modo a instrumentalizar a população de elementos que apontem para uma nova realidade. Senão, não tem sentido.

Sempre vamos encontrar uma fonte, um contraditório, uma inteligência que permita explorar os temas para além do seu impacto e do espanto iniciais. Essa fonte reside justamente no mesmo espaço da fatalidade e é o ser humano. A mesma humanidade que naturaliza a violência e a barbárie é resposta e reação a tudo o que está aí na vitrine desse ”show da vida” e que pode ser mudado. De preferência, para melhor. É disto que estamos falando.

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Uma ideia sobre “Qual é a boa?

  1. Luiz Ribeiro

    Dura realidade, duros dias esses que passamos. Dá tristeza, mas, ao mesmo tempo, dá esperança. De quatro em quatro anos a gente pode mudar. É verdade que nessas trocas não tem ocorrido melhoras mas um dia a gente aprende.

    Parabéns Thea

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