16:50João Gilberto, adeus

Ícone da bossa nova, o cantor e compositor João Gilberto morreu neste sábado (6), aos 88 anos, no Rio de Janeiro. A informação foi anunciada pelo filho do músico, João Marcelo Gilberto, nas redes sociais. A causa da morte não foi divulgada. Além de Marcelo, ele deixa outros dois filhos, Bebel e Luisa.

João Gilberto teve uma vida dedicada a aperfeiçoar a perfeição

Seu ‘Chega de Saudade’, de 1959, está para a bossa nova como a carta de Pero Vaz Caminha para o Brasil

Sua gravação do samba “Chega de Saudade”, de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, feita no Rio a 10 de julho de 1958 e distribuída sem alarde ou expectativa dois meses depois, tinha 1 minuto e 59 segundos de duração. Mas nunca tão pouco tempo de música significou tanto —dividiu a cultura brasileira em antes e depois. No mesmo espaço de tempo, João Gilberto, cantor e violonista baiano, 27 anos, saltou do nada para o centro das discussões.

Num país de comunicações precárias, aquele disco de 78 rpm alterou corações e mentes, a favor ou contra, onde fosse tocado. O canto a seco e sem ornamentos de João Gilberto não era propriamente novidade, mas, aliado ao violão que produzia um ritmo contagiante e inesperado —logo depois chamado de bossa nova—, à complexidade harmônica de Jobim e à sofisticação coloquial da letra de Vinicius, resultaram num todo revolucionário.

Meses depois, ainda em 1958, novo 78 rpm de João Gilberto, contendo o samba “Desafinado”, de Jobim e Newton Mendonça, consolidou a proposta. Havia uma nova música no ar, e João Gilberto era seu intérprete. Outras faixas, de novos e velhos compositores, foram gravadas nos meses seguintes, formando o LP “Chega de Saudade”, lançado em 1959, e que está para a bossa nova como a carta de Pero Vaz Caminha para o Brasil.

O lançamento desses discos (e dos dois LPs seguintes, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, em 1960, e “João Gilberto”, em 1961) provocou uma onda de shows semiprofissionais em universidades, despertou o interesse maciço de rapazes e moças pelo violão, revelou inúmeras vocações vocais e pareceu tornar “antiga” a música que se fazia até então no Brasil. De súbito, a bossa nova era um “movimento” — um novo estilo, uma nova música, algo com que uma geração inteira sonhara, e que acontecera.

E da maneira mais espontânea possível. A bossa nova não apenas não contou com a TV, ainda incipiente no país, como enfrentou a resistência das emissoras de rádio, então poderosíssimas e dirigidas a um gosto mais popular — mas até elas tiveram de se render. A imprensa, a publicidade, o comportamento, tudo de repente tornou-se “bossa nova”.

No rastro de João Gilberto, jovens compositores como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell e Marcos Valle, letristas como Ronaldo Bôscoli, cantores como Alayde Costa, Claudette Soares, Leny Andrade, Pery Ribeiro, Wilson Simonal, Nara Leão e Wanda Sá, músicos como os arranjadores Moacir Santos e Eumir Deodato, pianistas Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas e Sergio Mendes, contrabaixistas Bebeto Castilho e Tião Neto, bateristas Milton Banana e Edison Machado, e muitos, muitos outros, se revelaram.

Era toda uma geração surgindo e decretando uma espécie de verão permanente na música brasileira.
Os grandes artistas que, no decorrer dos anos 50, haviam preparado o terreno para a bossa nova, como Sylvia Telles, Dick Farney, Lucio Alves, Doris Monteiro, Miltinho, Luiz Bonfá, Johnny Alf, João Donato, Billy Blanco, Dolores Duran, Maysa, Tito Madi e Os Cariocas, não ficaram imunes. Alguns se integraram com naturalidade ao movimento; outros foram injustamente condenados pelo público a um quase segundo plano. Mas, cedo ou tarde, todos tiveram seu vanguardismo reconhecido. A chegada de João Gilberto tirara tudo do lugar.

De certa forma, isso se refletiu também no plano internacional. Sua descoberta pelos músicos e cantores americanos garantiu-lhe um culto que, começando em 1962, nunca mais parou. O LP “Getz/Gilberto”, lançado em 1964, é até hoje o álbum de jazz mais vendido da história —o que é surpreendente, por ser, na verdade, um disco de bossa nova e cantado em português! De Peggy Lee e Doris Day, naqueles tempos, a Diana Krall e Stacey Kent, passando por Frank Sinatra, não houve um grande artista americano, vocal ou instrumental, que não se deixasse influenciar pelo seu “blend” de voz e violão. João Gilberto teria ficado bilionário se ganhasse US$ 0, 01 por cada vez que, desde então e em qualquer país, alguém emulou ou emula seu estilo.

No Brasil, ao contrário, dedicamo-nos a cobrá-lo —por faltar a compromissos mal combinados, por não querer que o ar condicionado desafinasse seu violão, por pedir à plateia que o deixasse cantar baixinho. E por se manter fiel a um estilo e repertório que levou anos construindo e, com razão, não queria malbaratar. Esquecemo-nos de que, sempre que João Gilberto deixou seu eremitério no 30º. andar de um apart-hotel no Rio, foi porque alguém o arrancou de lá— agentes, empresários, gravadoras.
Enquanto o criticávamos por faltar a shows, deixamos de ouvir o seu legado, exposto em 13 álbuns de estúdio e, até agora, quatro ao vivo. Está tudo lá —o homem por trás daquelas maravilhas nem precisava aparecer.

Assim como criou a batida de violão da bossa nova tocando sozinho no banheiro de sua irmã, em Diamantina, MG, em 1956, João Gilberto passou as últimas décadas tocando para as paredes de seu apartamento, entregue a uma missão, por definição, maluca e impossível —aperfeiçoar a perfeição.

Relembre abaixo os principais momentos da carreira do músico.

10.jun.1931
– Nasce em Juazeiro, na Bahia, filho de Juveniano Domingos de Oliveira (comerciante) e de Martinha do Prado Pereira de Oliveira

1949
– Muda-se para Salvador, onde inicia sua carreira profissional integrando o cast de artistas da Rádio Sociedade da Bahia

1950
– Muda-se para o Rio de Janeiro, onde integra o conjunto Garotos da Lua como crooner, com o qual grava, em 1951, dois discos de 78 rpm, lançados pela gravadora Toda América

1952
– Inicia sua carreira solo, gravando um disco de 78 rpm para a gravadora Copacabana

1955
– Reside em Porto Alegre e, no final do ano, parte para Minas Gerais, onde passa um tempo com a família, dedicando-se ao estudo do violão

1958
– Acompanha ao violão a cantora Elizeth Cardoso na gravação de “Chega de Saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e “Outra Vez”, faixas incluídas no LP “Canção do Amor Demais”

– Grava um disco de 78 rpm contendo “Chega de Saudade” e “Bim Bom”, de sua autoria

– Casa-se com Astrud Evangelina Weinert, que fica conhecida como Astrud Gilberto e se torna uma das cantoras mais importantes da história da música brasileira

1959
– Lança outro 78 rpm em que grava “Desafinado” (de Tom Jobim e Newton Mendonça) e “Ho-ba-la-lá”, de sua autoria. Nesse mesmo ano, grava seu primeiro LP, “Chega de Saudade”, lançado pela Odeon, com produção musical de Aloysio de Oliveira e arranjos de Tom Jobim

1960
– Grava o LP “O Amor, O Sorriso e A Flor”, também pela Odeon, com destaque para “Samba de Uma Nota Só” (Tom Jobim e Newton Mendonça), canção também emblemática da bossa nova

1961
– Grava seu terceiro LP, “João Gilberto”, destacando-se “O Barquinho” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)

1962
– Participa de concerto no Carnegie Hall, em Nova York, produzido pela Audio Fidelity Records e patrocinado pelo Itamaraty, com o objetivo de promover a bossa nova nos EUA

1963
– Grava com Stan Getz o LP “Getz/Gilberto”. O disco conta com a participação da cantora Astrud Gilberto na faixa “The Girl From Ipanema”

1965
– Casa-se com Heloísa Maria Buarque de Hollanda, a Miúcha

– Recebe o Grammy (“Best Album”) pelo disco “Getz/Gilberto”.

1966
– Nasce, em Nova York, sua filha Bebel Gilberto. Nesse mesmo ano, foi lançado nos Estados Unidos o disco “Getz/Gilberto nº 2”

1970
– 
Lança o LP “João Gilberto en Mexico”, com destaque para o bolero “Farolito”, de Agustin Lara, além de “O Sapo” (João Donato) e “De Conversa em Conversa” (Lúcio Alves)

1973
– 
Grava o LP “João Gilberto”, que inclui “Águas de Março” (Tom Jobim) e “Isaura” (Herivelto Martins e Roberto Roberti)

1976
– 
Lança o LP “Best of Two Worlds”, que conta com a participação de Stan Getz e Miúcha

1978
– Volta ao Brasil para gravar especial de televisão, apresentando-se no Teatro Castro Alves (Salvador) e no Teatro Municipal (São Paulo)

1980
– 
Grava o especial “João Gilberto Prado Pereira de Oliveira” para a TV Globo, que conta com a participação de Bebel Gilberto e Rita Lee

1982
– 
Participa do Festival de Montreux (Suíça), que rende o lançamento do CD duplo “Live at the 19th Montreux Festival”

1987
– 
Recebe do governo brasileiro a Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho, no grau de comendador

1990
– 
É lançado nos Estados Unidos o CD “The Legendary João Gilberto”, coletânea dos três primeiros LPs de João gravados na Odeon, que resulta num processo contra a EMI

1991
– 
Lança o CD “João”, com destaque para “Ave-Maria no Morro” (Herivelto Martins), “Sampa” (Caetano Veloso) e “You Do Something to Me” (Cole Porter)

– Grava um jingle chamado Bossa Nova nº1, para a Brahma. Com produção sofisticada, o comercial é gravado no Theatro Municipal de São Paulo, com direção de Walter Salles e é acompanhado por uma série de eventos da Brahma

1994
– 
Realiza concertos, tendo a filha Bebel Gilberto como convidada, no Palace (SP). Uma destas apresentações é gravada ao vivo e se torna o CD “Eu Sei Que Vou Te Amar”

1999
– Em 29 de setembro, durante inauguração da casa de show Credicard Hall, em São Paulo, João Gilberto, que se apresenta com Caetano Veloso, faz duras críticas ao sistema de som, diante de uma plateia formada por políticos e convidados de patrocinadores. Vaiado, o músico mostra a língua, em momento flagrado pela Folha, e diz que nunca mais se apresentaria no local novamente

2000
– Lança o disco “João, Voz e Violão”, pela Universal Music, com produção musical de Caetano Veloso. O disco incluiu regravações de “Chega de Saudade” e “Desafinado”

2001
– Recebe o Grammy na categoria Best World Music Album, pelo disco “João Voz e Violão”

2003
– 
Apresenta-se (voz e violão) no Tokyo International Forum Hall A, no Japão

 

2008
– Após 14 anos de ausência dos palcos cariocas, apresenta-se no Theatro Municipal do Rio, celebrando os 50 anos da bossa nova, sendo acompanhado pela plateia em coro, ao final do espetáculo, na canção “Chega de Saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)

2009
– A revista DownBeat elege João Gilberto como um dos 75 melhores guitarristas da história do jazz e como um dos cinco maiores cantores de jazz

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