9:50Você tem sede de quê?

por Thea Tavares

A história é realmente cíclica. As forças que disputam, se enfrentam e que se estabelecem no comando da vida em sociedade de tempos em tempos repetem fórmulas, conceitos e métodos para se manterem em posição confortável ou para reagirem aos desconfortos. O que muda nessa sucessão de repetições ou nesse museu de grandes novidades são as personagens, os fatos, a localização dos acontecimentos, mas não é raro percebermos o futuro repetir o passado, como cantou Cazuza. O que surpreende e acende um pisca-alerta é muitas vezes a força que se imprime para retroceder nessa caminhada e anular a influência dos incômodos causados a esse stablishment.

Estamos novamente atravessando um momento em que nos espreita um moralismo persecutório e intimidador perigoso, que escolheu os professores como sendo os inimigos “número 1” da sociedade. Claro, de uma sociedade que não deveria mesmo refletir sobre os absurdos e contradições vividos, mas apenas acatar como verdade irrefutável os ditames. Até a alegria é calculada! Em outros momentos assim, as mulheres viraram bruxas, pessoas foram escravizadas, etnias perseguidas e genocídios justificados para a retirada das pedras do meio do caminho. Os livros de história que resistiram bravamente a incêndios e guerras estão repletos desses episódios.

Uma das teses que prevalecem hoje e colocam um alvo na testa dos professores, como doutrinadores de milhares de inocentes e irracionais jovens, ao mesmo tempo em que confere atestado de incompetência aos primeiros educadores de fato na vida da gente, que são nossos pais, adultos ou responsáveis à nossa volta, de quem herdamos as primeiras percepções, reações e comportamentos, e de quem reproduzimos tudo a partir do exemplo, ela nos imbeciliza por completo. Aviso aos navegantes: trazemos de nascença gostos e preferências que vamos assimilando melhor ao longo da vida e convivência.

Prefiro acreditar que nos construímos, fazendo escolhas e não apenas acatando ou só reproduzindo verdades alheias. Escritores, artistas e músicos em especial me apresentaram um cardápio maior de possibilidades para tomar minhas próprias decisões, que os professores que se tornaram referência por terem sido facilitadores, com suas informações, vivências e conhecimentos acumulados, nessa busca por consolidar uma identidade pessoal. Mas nem os artistas e os músicos podem ser taxados de cúmplices dessa trajetória porque foram justamente a afinidade sentida e o significado que palavras e sons provocaram em determinado momento, que definiram gostos e preferências.

Cresci ouvindo em rádios um repertório eclético – isso ainda era possível há algumas décadas atrás, acredite – e fui separando aquelas canções cujas mensagens de cunho social falavam de gente, de conquistas diversas, de sentimentos que combinavam desde já com minha personalidade. A MPB – Música Popular Brasileira – tinha tudo de que precisava: gente humilde, utopia, cio da terra, Severinas e Cajuínas ou a voz poderosa e empoderada de uma Elis Regina, invadindo e timbrando a alma da gente… Na adolescência foi o pop rock. Em meio aos questionamentos e críticas perfeitamente normais de serem feitos nessa fase, fui me perguntando: Que país era esse, que atacava índios inocentes? Até quando tínhamos de esperar por mudanças? Quais eram a minha fome e a minha sede? Por que a tal da burguesia fedia tanto assim? Nessa época, já considerava justa toda forma de amor, o Lulu Santos só reforçou a ideia ao microfone, não foi com mamadeira de piroca. E nem se pode mais perseguir alguns desses músicos que sacudiram minhas ideias porque eles não ficaram aqui por muito tempo para que pudéssemos ver suas mensagens envelhecerem ou se amargurarem pelo próprio curso da natureza. Deixaram apenas o brilho de sua inventividade.

Desse mundo cheio de sons, de percepções, de atitudes e de significados a gente seleciona o que faz bem – ou nem sempre – e o que mais importa. Não que sejamos bichos egoístas pura e simplesmente, embora o manual de sobrevivência que nos foi entregue no parto imponha essa necessidade individual como primeiro mandamento. A menos que a escolha da pessoa seja se refugiar em uma caverna ou blindar-se a tudo em volta, vale lembrar que esse mundão de porteira escancarada é habitado, está repleto de pessoas que, assim como nós, foram encontrando seus rumos nessa vida fazendo escolhas, perseguindo oportunidades, driblando adversidades e superando obstáculos. Interagindo e se agregando. Quando o moralismo persecutório compreender esse funcionamento, vai parar de apontar o indicador para nossos professores e vai achar outra ocupação. Quem sabe até encontre uma brecha por onde possa deixar entrar um fio de amor e de leveza, que elimina as chances de contrairmos ou disseminarmos doenças emocionais.

Em respeito a essa humanidade que caminha só para ser feliz e porque o dia dos namorados está chegando, deixo aqui um dos mais lindos poemas musicados, com a esperança e confiança de que a vida possa ser melhor… E será, como dizia o Gonzaguinha. Mas essa é só uma sugestão, sem compromisso:

 

Te Quiero
(Poesia do escritor uruguaio  Mário Benedetti)

Tus manos son mi caricia,
mis acordes cotidianos;
te quiero porque tus manos
trabajan por la justicia.

Si te quiero es porque sos
mi amor, mi cómplice, y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.

Tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada;
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro.

Tu boca que es tuya y mía,
Tu boca no se equivoca;
te quiero por que tu boca
sabe gritar rebeldía.

Si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.

Y por tu rostro sincero.
Y tu paso vagabundo.
Y tu llanto por el mundo.
Porque sos pueblo te quiero.

Y porque amor no es aureola,
ni cándida moraleja,
y porque somos pareja
que sabe que no está sola.

Te quiero en mi paraíso;
es decir, que en mi país
la gente vive feliz
aunque no tenga permiso.

Si te quiero es por que sos
mi amor, mi cómplice y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.

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