9:51Vida ao Acaso

por Fernando Muniz 

“Recém-casados?” Julia gosta de adivinhações. João, seu marido, sequer percebe que dividem a mesa.

“Não. Estamos aqui pela vida mesmo. Ou o retorno dela!” Marina tenta soar feliz. Marcos faz um sinal de reprovação, porque detesta intimidades com estranhos. Ainda mais naquele restaurante, de comida vietnamita, uma birosca indicada por algum blogueiro gourmet, em que todos jantam empilhados, feito refeitório de fábrica.

Julia se interessa pela história. “Como assim?” João nota que têm companhia e teme que a esposa irá reclamar. Olha para os lados; nenhum lugar vago, gente em pé a esperar mesa.

“Passamos por um momento muito difícil, de saúde”. Marina continua, sem se importar com o marido e suas manias. Mas sabe que não deve provocá-lo. “Você vai contar ou eu conto?” Julia e João cravam os olhos em Marcos.

“Bom, então vamos lá. Imaginem vocês que, ano passado, na véspera de viajarmos em férias, com tudo reservado e pago, resolvo ir ao médico das nossas crianças, grande amigo, para pedir alguma coisa contra uma gripe que não ia embora”.

“Só foi porque eu enchi bem a paciência dele”, Marina completa. “Pois é. O homem resolve ser ‘médico’, ao invés de meu camarada e me pede uma chapa dos pulmões”.

João não se contém. “É isso que eu digo: por que ir ao médico? Sempre acham alguma coisa errada”; e solta uma risada, que logo amarela, ao leva um cutucão de Julia.

“Pois é. Fui, tirei o raio-x e, no início da tarde, ele examinou a chapa e fez uma cara de quem não gostou. ‘Ó, você vai precisar fazer uma tomografia. Ainda hoje. Nada de viajar sem fazer isso antes’”.

“E ele não me contou nada, esse bandido!” Marina dá um tapinha no ombro do marido.

O garçom se aproxima e pergunta o que irão comer. João nem lembra o que tem no cardápio; por sinal, a impressão dos casais é que o restaurante, lotado e barulhento quando chegaram, nem existe mais.

“Fiz a tomografia no final da tarde e, dali a duas horas, saiu o resultado”.

“E então!?” Julia e João perguntam ao mesmo tempo, enquanto o garçom, com o bloco de notas aberto, aguarda os pedidos.

“Um tumor, do tamanho de uma tangerina, entre o pulmão e o coração”. Os dois ficam de queixos caídos. O garçom não para de abrir e fechar a caneta.

Marina solta um longo suspiro. “Imaginem o susto que eu levei ao receber essa notícia… assim, do nada. Tudo estava bem e aí, de repente, o mundo parou!”

“Mas você não sentia nada?” Julia quer saber de todos os detalhes. “Nada. É uma condição que evolui aos poucos, em silêncio, até o tumor ficar de um tamanho que começa a atrapalhar o coração ou o fluxo sanguíneo. Isso se o tumor não se espalhar pelos órgãos ao redor e, aí, as chances de cura são pequenas”.

“Sério?!” Marina toma um susto. “Você nunca me contou isso…” Julia e João se entreolham.

“Pois é. Já que você insistiu, vamos contar tudo”. O tom de Marcos assusta a todos. O garçom desiste de perguntar pelos pratos e vai atender outra mesa.

“Você aceita uma cerveja? Dá para tomar pelo menos uma, né?” João sequer disfarça a impressão de que participa da última ceia de Marcos.

“Que é isso, rapaz! Conseguimos tirar o tumor a tempo”. Marcos sorri pela primeira vez, liberto ao contar sua versão dos eventos. Marina, um pouco agitada com o desembaraço do marido, pede ao garçom um pouco d’água.

Julia pensa em ir ao banheiro, ou lá fora, tomar um ar. Sua curiosidade a deixou, mais uma vez, constrangida. O que conversar com eles depois dessas revelações? E o jantar nem chegou ainda. Poderia ter ficado no trivial trabalho-família-filhos; mas não. Tinha que meter o nariz na trama alheia. João, profundo tal qual uma poça d’água, não sabe onde se enfiar. A começar pelas mãos, que derrubam a cerveja de Marcos assim que o garçom traz as bebidas.

“É, mas essa história de ‘cura’ é meio relativa. Pode ser que o rumor volte. Pelo menos por cinco anos ele vai ter que fazer exames de rotina”. Marcos corrige a esposa: “Na verdade, pelo resto da vida. Assim como não existe ex-fumante nem ex-alcoólatra, quem teve tumor uma vez corre o risco de ter recaída”.

João, que até aquele momento tinha se reservado a chamar o garçom e pedir bebidas, começa a perguntar a Marcos o que lhe vem à cabeça, como crianças costumam fazer. “Então você foi ao médico pedir uma aspirina mais forte e descobriu um treco escondido no peito. É isso? Assim, do nada?”

“Do nada”.

“E esse negócio poderia ter crescido até fazer o teu coração parar ou, então, se espalhar para todos os lados e aí, babau?!”

“João!? Que isso!”

“Peraí Julinha, eu preciso entender. Quer dizer então que, se não fosse uma chapa de pulmão bozó, pedida pelo teu camarada que resolveu ser médico naquela hora, você poderia estar no caixão?”

“Isso mesmo”.

João olha para os três, confuso. “E o teu amigo médico, o que ele fez quando te deu o resultado?”

“Tomou uma garrafa de Jack Daniels. Todinha. Em plena quarta-feira”. João solta uma gargalhada, alta, nervosa, que atrai a atenção da vizinhança.

Marcos segura a mão de Marina, ainda agitada e olha para o casal. “O médico que me operou chama isso de intervenção divina; meu amigo disse que seguiu o protocolo da profissão. Entre um extremo e outro, as respostas variam”.

“E você?” Julia, mais uma vez, não se controla. “Eu?” Marcos não pensara no assunto desde a descoberta do tumor.

“Eu acho… eu acho que ganhei na loteria”.

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