7:38Louis C.K. em Lisboa

por João Pereira Coutinho

A conduta privada de Louis C.K. não mancha o seu talento como humorista

Lisboa, maio de 2019. Estou em casa, um amigo telefona. “Vamos ver o Louis C.K.”? Agradeci mas disse que não. “De momento, não posso viajar. Trabalho.”

Ele riu e disse que não era preciso: o maior humorista americano estava em Lisboa e iria atuar no Maxime. “Isso é piada?” Não era. Fiz continência e parti.

Louis C.K. no Maxime: como a vida é cruel! Embora, no caso de Louis, a culpa seja dele. Em 2017, com o movimento #MeToo a ceifar várias carreiras, Louis foi acusado por cinco mulheres de se ter masturbado na presença delas.

Louis reconheceu o erro e pediu desculpa. Em sua defesa, acrescentou apenas que pedira licença primeiro. (Parece piada, eu sei).

De nada valeu. Várias produtoras cancelaram ligações profissionais com ele. E até o seu filme, “I Love You Daddy”, morreu na praia.

Louis não morreu. E, em Lisboa, em sala minúscula, perante uma audiência de cem pessoas (ou menos), começou pelo óbvio: ele estava ali, numa sala minúscula, perante uma audiência de cem pessoas (ou menos). “Aposto que quando vocês souberam do que aconteceu, pensaram: é agora que ele vem a Lisboa”. Cito de memória. Risadas gerais. Mas como foi que “aquilo” aconteceu?

Cito novamente de memória: “Quando somos bons a fazer qualquer coisa, queremos sempre ter audiência.” Risadas. Nervosas.

Foi o início de um espectáculo de selvajaria e humor onde apareceram os suspeitos do costume: pessoas retardadas; deficientes; pedófilos; lojistas tradicionais; Deus e seus crentes; e também o pai e a mãe e a irmã (em piadas irreproduzíveis porque a Folha é um jornal de família). No final, o que ficou?

Três ideias. A primeira é minha e já escrevi abundantemente a respeito: será que a conduta privada de Louis C.K. mancha o seu talento como humorista?

Não mancha. A tendência recente de confundir tudo —o homem e a obra—  nunca foi a minha praia.

Escrevi “tendência recente” mas corrijo: é uma tendência velha e bem velha. Quando leio certas críticas que se escrevem por aí, aplicando a obras de arte padrões morais ou ideológicos que são exteriores à obra, lembro-me instintivamente dos censores soviéticos ou nazistas que desaprovavam a “arte burguesa” ou a “arte decadente” por não se adequar aos cânones autoritários do Kremlin ou do Reich.

Admito: coagir terceiros a testemunharem atos sexuais impróprios também não é a minha praia. Mas eu não sou juíz nem policial; sou parte da plateia e, mil perdões pela palavra, “esteta”. E, como esteta, faço minhas as palavras de Oscar Wilde: não existe arte moral ou imoral; apenas arte bem feita ou mal feita.

Se Caravaggio era um homicida; se Egon Schiele era pedófilo; se Picasso era misógino, isso não diminui a autoridade e a autonomia estética das suas obras. Se diminuísse, seria necessário remover dos museus, das bibliotecas e das salas de concertos todos os artistas com biografias questionáveis. Quem sobreviveria a essa demencial inquisição?

Louis C.K. vale como humorista. E, como humorista, ele oferece uma segunda lição: o seu humor obsessivo e transgressivo não é apenas precioso pelo rasgo de liberdade que transporta, sobretudo quando a “liberdade de expressão” está longe de ser um adquirido civilizatório.

Nas palavras da humorista francesa Blanche Gardin, que definiu o seu colega americano melhor que ninguém, Louis é “um monstro da sinceridade”.

Tradução: os preconceitos, os medos, os delírios e as sujidades de Louis podem ser abomináveis. Mas, se formos sinceros, todos aqueles vícios são também nossos. Pelo menos, quando não estamos a sinalizar publicamente uma virtude que não temos.

Por isso as reações ao humorista são tão extremas: há os que riem porque encontram no riso um mínimo de catarse e (auto)perdão; e há os que abandonam a sala, incapazes de contemplar o próprio reflexo.

Nos Estados Unidos, e já depois do escândalo, muitos abandonaram as salas onde Louis C.K. se atreveu a reaparecer.

Mas, naquela noite quente de Lisboa, ninguém se levantou da cadeira para sair em protesto. Eis a terceira conclusão.

Os portugueses são uns bárbaros, claro. E Louis, que começou cético, terminou com um sorriso grato. Estava em família — a família humana.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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