8:00Os dias lindos de Brasília

por Thea Tavares

Tem uma crônica do Drummond em que ele descreve “Os Dias Lindos”. É linda de morrer, simplesmente bela, como é natural que transbordem de beleza as coisas mais singelas da vida. Nesse texto, ele brinda à cor, ao Sol, à leveza no ar que convida a sermos mais brandos e gratos também no nosso dia a dia e nas nossas relações sociais, driblando as brutalidades e irritações do cotidiano, que não são poucas e que nos desafiam todo o tempo a escapar dos surtos psicóticos.

Lembrei dos dias lindos de Drummond em uma manhã de sábado, em Brasília, recebendo um banho de claridade, de frescor e de céu azulado logo no início do período. Sabia que à medida em que se aproximasse do meio dia, a temperatura subiria e o calor nos orientaria ao abrigo em locais fechados. O clima desértico tem dessas variações de humor, mas desde que os noticiários nos contaram resultados de pesquisas científicas sobre os efeitos dos raios de sol na nossa pele e os danos causados pela incidência dessa luminosidade com o passar das horas, qualquer lugar do planeta perdeu a inocência do bronzeamento natural. A culpa não é de Brasília. A cidade só é mais sincera em nos alertar para os cuidados que devemos ter.

É bem verdade que naquela manhã de maio, quando ainda não se sente a chegada da estação seca, a redução da umidade no ar e o frescor deixado no rastro daquela temperatura mais baixa que fez durante a noite nos abraça, não tem como não lembrar da proclamação e do apelo de Drummond para sermos um conjunto harmonioso e simultâneo de ar, luz, suavidade e gente. Como seria delicioso se todos pudessem ao menos uma vez ter a clareza e a constatação disso para inspirar e devolver com toda a delicadeza esse frescor e leveza ao cotidiano e às pessoas em volta!

Aliás, costumamos ser injustos com a própria cidade de Brasília, que é cosmopolita por natureza e que virou símbolo de erros e malfeitos humanos, possíveis e passíveis de ocorrerem em qualquer parte. Porque não são exclusivos de prédios, repartições, tijolos, paredes e endereços desse ou daquele lugar, mas estão nas pessoas, nas suas ações, expressões, valores e nas relações que estabelecem nos espaços públicos ou privados de convivência. Experimente fazer gracinha com motorista de táxi ou de aplicativo de mobilidade da capital federal sobre essa significação até preconceituosa da cidade e vai logo ouvir de retorno: vocês que escolhem nos seus estados e mandam para cá, a gente se responsabiliza apenas pelas nossas escolhas. E é a mais pura verdade! A representação popular que tem em Brasília seu local de trabalho só exibe a qualidade da evolução da cidadania e da democracia, como expressão da nossa própria realidade. Sem juízos de valor. Se precisa ser melhorada, será como reflexo dos nossos próprios valores e da nossa responsabilidade e compromissos sociais.

E Brasília tem um lado que nem todo mundo fora de lá conhece. Ela emana a consciência do “público”, outra palavra que foi desvirtuada e que se torna pejorativa quando os ataques às manifestações da vontade popular se impõem e a gana pela apropriação do que é coletivo se sobressai. Mas com todas as críticas que se possa ter à desigualdade gritante no desenho urbano e organizacional da cidade, desde a sua construção até hoje – ela existe e está ali escancarada, explícita, não disfarçada -. Brasília expressa em alguns detalhes a sua consciência do público.

Você não vê por lá a danura explícita em outros locais, como São Paulo e Curitiba, pela proliferação de estacionamentos pagos, particulares e caros, que esvaziam os bolsos da gente apenas por ousar sair de casa. Do shopping, onde já se vai para gastar dinheiro, até o hospital e a faculdade, nas ruas mais ou menos disputadas da região central, você vai amargar essa despesa. Claro que na Brasília de avenidas largas e distâncias consideráveis, o veículo de locomoção, especialmente o automóvel, vira uma extensão das famílias. Praticamente um recurso de sobrevivência. Mesmo nos estabelecimentos comerciais fechados você encontra uma cota de vagas públicas disponíveis para estacionar. Isso vem diminuindo, é bem verdade, mas salta à vista a constatação do quanto difere de outras localidades. Tomara que essa condição resista por algum tempo mais às pressões gananciosas. Ainda assim, ela é merecedora de atenção.

Além disso, a cidade foi desenhada para ser um espaço aberto e livre de circulação e para que o próprio cerrado estabelecesse os limites das edificações e ocupasse o espaço das cercas. O saguão dos prédios residenciais das quadras do traçado original da cidade, por exemplo, são espaços públicos de circulação. Só é privativo o que estiver do elevador da recepção para cima. E você não vê abusos a essa liberdade de trânsito para além dos problemas cotidianos de um grande centro urbano qualquer. O acesso ao lago artificial – constantemente alvo de resgates para que seja ampliado e devolvido às pessoas – e também ao patrimônio público da cidade ainda estão lá, teimando em existir. Outra coisa que quem é de fora não enxerga de imediato é o mundo para além dos tradicionais cartões postais. Há mais coisas para ver e visitar depois do tour cívico.

Sem ingenuidades, a cidade tem seu histórico de desigualdades, lutas de classe e arbitrariedades também, o que motiva uma crônica exclusiva, mas isso não a difere do restante do país e é preciso que seja contado, descrito e visibilizado como parte da educação e de uma cultura de transformação da realidade pelas mãos e decisões dos seus habitantes. Ainda assim, as palavras de um amigo, natural do Mato Grosso do Sul e orgulhoso disso, cabem direitinho para descrever a sensação de viver em um campo aberto de possibilidades. Ele me disse que, por vir de uma região com relevo acidentado e muito morros, eu talvez não entendesse o prazer que ele sente de ter crescido e de viver em um local plano. “A gente enxerga longe, não encontro barreiras à frente e tudo está ao nosso alcance”. Gostei disso! Mas aqui vai um recado que é quase um provérbio de conclusão desse texto: não se engane! Você enxerga, sim, as coisas e oportunidades como próximas, mas elas ficam distantes nesse horizonte. São caras. Guardam toda sorte de obstáculos escondidos, sorrateiros, como em qualquer lugar. É preciso construir e perseguir as conquistas ao longo do caminho, caminhando. E esse caminhar ficará melhor se tivermos a chance de experimentar algumas vezes a brisa, o frescor e a suavidade de dias lindos.

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