9:57Que merda é essa?

A manchete do ano, até agora, foi publicada no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo. “Que merda é essa?” poderia traduzir a situação atual do país, mas a reportagem é científica e informa como o cocô humano pode tratar infecções, obesidade e problemas mentais. Confira:

Cocô humano vira tratamento contra infecções, obesidade e problemas mentais

Pesquisa sobre uso medicinal de fezes é vanguarda na biomedicina moderna

Reinaldo José Lopes

Com pesquisas sobre transferência de fezes, a ciência contemporânea encontra um modo de reequilibrar o organismo humano como habitat natural de bactérias que são destruídas indesejavelmente pela ampliação do uso de antibióticos.

Revoluções médicas costumam vir de lugares improváveis. O laser começou a ser estudado como mera curiosidade óptica e, no entanto, acabou virando ferramenta indispensável em cirurgias oftalmológicas e tratamentos estéticos (entre outras coisas). O bolor que cresceu acidentalmente numa cultura de bactérias de um hospital londrino nos anos 1920 levou à descoberta da penicilina e à Era dos Antibióticos, na qual ainda vivemos. E algumas das consequências nefastas dessa era talvez sejam sobrepujadas graças às maravilhas do cocô humano.

Ok, o termo técnico é “transplante de fezes” ou “transplante de microbiota fecal”, mas não dá para dourar muito a pílula: estamos falando de obter cocô de uma pessoa saudável para introduzi-lo (às vezes, pelo ânus) no organismo de pacientes —que podem estar sofrendo de diferentes doenças gastrointestinais ou mesmo com problemas que, à primeira vista, parecem não ter relação nenhuma com o trato digestivo.

Ao menos em certos casos, como os de infecções de difícil tratamento por meios convencionais, funciona que é uma beleza.

Funciona tão bem, aliás, que já existem debates regulatórios sobre como classificar esse tipo de terapia nos Estados Unidos —empresas de biotecnologia buscam meios de patentear seus próprios coquetéis fecais, como se eles fossem novas drogas, enquanto bancos públicos de fezes argumentam que o processo é similar ao transplante de órgãos. Isso, portanto, impediria que o material transplantado fosse, ele próprio, objeto de propriedade intelectual.

admirável mundo novo da transferência de fezes, ademais, é só a ponta de lança de uma transformação conceitual muito relevante na biomedicina moderna, apesar do imaginário algo medieval e escatológico que cerca a ideia.

Essa mudança conceitual está ligada à percepção de que organismos como nós são bem mais do que a simples soma de células que carregam DNA humano e de um único indivíduo. Faz mais sentido pensar no meu e no seu corpo como ecossistemas tão complexos quanto uma floresta tropical (ainda que, é claro, em escala muito menor).

É a interação entre tecidos e órgãos humanos, de um lado, e uma miríade de pequenas criaturas parasitárias, comensais e simbióticas, de outro, que leva ao surgimento de um organismo —ou melhor, superorganismo— funcional e relativamente harmônico.

Eis o corolário desse raciocínio: muitas vezes, não adianta tratar apenas o indivíduo Homo sapiens; é preciso tratar o ecossistema em miniatura como um todo. E, para isso, vale a pena tentar abordagens pouco convencionais e um tanto asquerosas.

Paradoxalmente, porém, essa percepção só começou a ganhar corpo graças aos efeitos da abordagem nada holística que a Era dos Antibióticos trouxe para o tratamento de infecções bacterianas.

Seria, é claro, uma injustiça histórica tremenda condenar essas drogas. Estimativas falam em centenas de milhões de vidas salvas apenas graças à penicilina. Mas, muitos desses medicamentos, quando comparados a exércitos antibacterianos, são do tipo que atira primeiro e nem chega a perguntar depois, matando de modo indiscriminado tanto o exército inimigo (as bactérias causadoras de doenças) quanto civis ou funcionários da Cruz Vermelha (os micróbios inócuos ou mesmo benéficos que também compõem o ecossistema interno do organismo humano).

Só esse fato já seria suficiente para criar problemas, mas é preciso considerar ainda o papel dos antibióticos como poderosos motores da seleção natural, o processo chave da evolução dos seres vivos.

Bactérias são capazes de se reproduzir a velocidades estonteantes, produzindo cópias de seu DNA e gerando células-filhas. Essas descendentes invariavelmente carregarão erros de cópia em seu material genético, o que corresponde à possibilidade de apresentarem características diferentes de suas genitoras —tais como, digamos, resistência natural a antibióticos.

De quebra, ainda que as células bacterianas não façam sexo como os vertebrados, elas conseguem trocar material genético entre si de quando em quando —cruzando, inclusive, a barreira entre espécies (imagine um flamingo copulando com uma rã, a qual acaba desenvolvendo, pouco depois, um bico recurvo similar ao da ave, e você terá alguma ideia do grau de promiscuidade genética desses micro-organismos).

Isso significa que a resistência a antibióticos pode se espalhar com rapidez alarmante entre populações de micróbios por meio do “sexo” bacteriano.

Mesmo que esse tipo de troca de genes demore a acontecer, porém, a matança generalizada produzida pelos antibióticos —em especial se usados de forma descuidada— tende a deixar vivos no organismo uns poucos exemplares de bactérias resistentes, naturalmente (ou artificialmente, dá no mesmo) selecionadas para se multiplicar de novo assim que o organismo lhes oferecer uma brecha. E, na vez seguinte, sem que o ataque medicamentoso chegue a fazer cócegas nelas.

Tudo isso acaba produzindo, na plenitude do tempo, o que hoje chamamos de superbactérias —vilões microbianos resistentes a múltiplas classes de antibióticos (ou seja, remédios com diferentes mecanismos de ataque a micróbios em nível molecular).

É o caso de certas cepas (variantes ou “raças”) do bacilo Clostridium difficile. (Ele não ganhou esse sobrenome latino por ser difícil de matar, mas pela dificuldade inicial de cultivá-lo em laboratório.)

Tal como muitas outras superbactérias, a criatura adora hospitais, basicamente porque são ambientes nos quais antibióticos são empregados à farta, para evitar que pacientes operados sofram com infecções oportunistas em seus cortes, por exemplo. É transmitida das fezes para a boca, em geral por contato do paciente com objetos e mobiliário do hospital.

C. difficile produz diarreia (mais de três evacuações aquosas por dia), dor abdominal e febre. Em situações mais graves, as toxinas que o micróbio injeta no organismo, capazes de destruir as células da superfície do intestino, desencadeiam o que os médicos chamam de megacólon tóxico (um inchaço muito grande do cólon, região do intestino grosso) e podem acabar perfurando o órgão.

Cerca de 30 mil americanos morrem anualmente como consequência desse processo —não há dados similares sobre o Brasil, em parte porque testes para detecção específica da bactéria raramente são realizados por aqui.

Mesmo quando não leva à morte do paciente, a infecção é um pesadelo por ser recorrente: os antibióticos parecem fazer algum efeito no começo, mas a diarreia continua voltando. E é aí que o cocô alheio se apresentou como possível redentor.

Convém lembrar que, embora testes científicos sistemáticos da abordagem só tenham se acumulado ao longo da última década, ela também tem algo de ancestral. Textos chineses do século 17 recomendam a ingestão do chamado “xarope dourado” ou da “sopa amarela” (nomes que, eu sei, parecem saídos de um esquete de Monty Python) para tratar diarreia e problemas abdominais. A matéria fecal era diluída em água e engolida. No começo deste século, beduínos recomendavam a ingestão de fezes frescas de camelo para tratar disenteria.

Os métodos que estão sendo testados e aprovados hoje não exigem um estômago tão forte. Pode-se, por exemplo, usar colonoscopia ou endoscopia para fazer a matéria fecal de pessoas saudáveis chegar ao intestino de quem não consegue se livrar do C. difficile.

Outras opções são as chamadas sondas nasogástricas (que entram pelo nariz), o enema (injeção de fluido pelo ânus, sem necessidade de anestesia) ou mesmo a ingestão de cápsulas de gelatina, preparadas de forma a não carregar o cheiro e o gosto da matéria-prima. Também é importante diluir, homogeneizar e filtrar as amostras antes da aplicação.

Diversas sociedades médicas mundo afora já recomendam a abordagem para tratar pacientes que passaram por rodadas dos antibióticos normalmente usados contra a bactéria e acabaram sofrendo com novas infecções de C. difficile. A taxa de sucesso do transplante costuma ser bastante alta nesses casos, variando entre 80% e 90%.

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