8:10Paisagens esmaecidas de ti

de Zeca Corrêa Leite

Cartas perdidas nos ventos e sensações, doces cantorias de esquecidas vozes, alguma coisa de roupas nos varais, vermelhas, brancas, agitadas suaves ao vento suave da tarde. Que fazem o piano e violino a me falarem de calendários da memória?

Colocaste roupas de luto, foste pela rua de chão seco, terra dura, inclemência do sol, vazio de sons. De vez em quando, nos jardinzinhos tímidos das casas simples, jogava cópias de tuas novenas. Eras sombra um pouco viva, um pouco morta.

Ao redor da casa recolhi pedaços de teu perfume, pelos incertos corredores do jardim e do quintal por onde andastes. Distraídos passos, talvez revivendo nas lembranças mudas as sensações de outras noites. A quem buscas nos fugitivos atalhos do peito? Quais planos arquitetas enquanto as abelhas ao teu lado sugam das flores o néctar? Por que não eu a te divertir com magia, trazer copo d’água, oferecer biscoito de polvilho, dedicar um poema? Por que não eu a tirar-lhe o sono, pensando em mim? Nas mãos trago vestígios perfumados de tua impaciência.

Enquanto cortava o bife, fiquei vendo com que cuidado dobravas a folha da alface, distraída quase. Do rádio vinha a voz de Cauby Peixoto, “estranhos caminhos pisou…” Enquanto levava à boca arroz e feijão, observava a folha de alface na ponta do garfo, e em teus lábios podia ler a canção que vinha do rádio. Em torno de mim, de ti, o dia escorregava manso.

Recostavas na cadeira de balanço e punhas a contar histórias de fantasmas. Incutias em mim medos jamais desfeitos. Estão nos porões do meu ser, inacessíveis.

Cessaram as palavras, acumulam-se os pensamentos.

Tatuei cada esperança – das mais simples às mais portentosas – no corpo da solidão. Como se fosse livro escrito em segredo, panos chuleados ao vento, brilhos do olhar presos na noite.

O que restou dos castelos erguidos no ar? Isso que vês: translúcidas manhãs sem cristais, sem sonhos, sem novo amanhecer. Mesmo os casos das paredes transparentes desfizeram-se e tudo o que resta são brisas cansadas na paisagem do outono.

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2 ideias sobre “Paisagens esmaecidas de ti

  1. Deonilson

    Grande Zeca! Saudades do nosso tempo de Folha de Londrina. ZCL sempre foi uma fonte inesgotável de criatividade, emoção e sensibilidade. É assim, os dias e os anos “escorregaram mansos”.. ficam as boas lembranças do tempo vivido e convivido!

  2. zeca corrêa leite

    Deonilson, fiquei profundamente emocionado com seu gesto, suas palavras. Sim, as boas e belas lembranças permanecem em territórios de luz que a gente carrega. Na depuração que a passagem do tempo obrigatoriamente traz o que era cotidiano ganha outra luz e cores. Esse período que você cita era lindo naquele tempo, e hoje se transformou em magia. Abraço.

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