7:46Quisera ser um avestruz

por Thea Tavares

Vivemos tempos de supervalorização das opiniões pessoais e isso foi muito potencializado a partir principalmente das redes sociais. Longe de significar liberdade de pensamento crítico, de participação, elas engrandeceram uma espécie de fogueira das vaidades em ambiente digital. Foi nesse ambiente também que o “achismo virou ciência”, expressão que uma amiga costuma usar e que define perfeitamente o momento atual.

“Respondo que ele aprisiona, eu liberto; Que ele adormece as paixões, eu desperto”. (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos – 1980 – Na interpretação de Nana Caymmi, da trilha sonora da minissérie de TV “Hilda Furacão”).

Já faz tempo que decidi separar preferência artística – musical, em especial – da crítica política e social. Embora tenha todo o direito, enquanto consumidora cultural de fazê-lo e quanto mais admirar a pessoa e a verdade do artista, maior será essa preferência, mas optei por encarar o tema de uma forma leve. Versos como o do saudoso Belchior – “sons, palavras são navalhas e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém” – são para emoldurar e pendurar na parede. Para colocar no caminho em que a gente vá passar e ler todo santo dia.

Artista é gente como a gente, enfiado lá no seu contexto umbilical de relações sociais e vai expressar, senão na arte em si, mas nas suas entrevistas, exposições e opiniões, esse universo em que está mergulhado e interage. É decisão dele se vai “cantar” com toda criatividade – e empatia – só o seu próprio meio ou se vai acender uma luz de visibilidade sobre outros meios, outras dores ou alegrias que não apenas as suas, dentro de como ele gostaria que esse mundão velho sem porteiras funcionasse. Ele tem conhecimento e literatura para tanto. Claro que todo artista, por mais que preserve a intimidade, é um comunicador, seja com um microfone na mão, diante de uma plateia ou de uma multidão. Sendo esse comunicador, tem também sua carga de responsabilidade social com o que diz e a forma como se manifesta, mas, assim como todos nós, possui uma dose cavalar de natureza humana gritando dentro dele.

Quando não concordarmos com as opiniões dos nossos “ídolos”, criticamos, arquivamos bem guardadinho na memória esse fato ou o ignoramos. Mas, vá por mim, tem horas em que é preciso separar a música e a poesia da realidade da pessoa que escreveu ou canta os versos. Puro instinto de sobrevivência! Torna menos dolorosas as decepções. Sabe por quê? A relação que a gente intimamente estabelece com uma canção, um poema ou outra forma de expressão da arte tem referências ancoradas nos nossos sentimentos, nas lembranças… As palavras e expressões que o artista universalizou a partir da sua própria experiência provocam o rebuliço de uma infinidade de coisas na alma da gente, que ele ou a sua opinião sobre o que quer que seja, me desculpem os mais orgulhosos do seu trabalho, se tornam um mero detalhe.

Quando a gente se apropria de uma canção, de um verso, de um poema, essa arte fica tatuada na nossa personalidade e a cada vez que ouvimos os versos e as versões, a nossa memória nos remete ao endereço que criamos para ele e traz de volta sensações, cheiros, sabores e emoções que o artista jamais sonhou vivenciar. Posso discordar e entender a crítica do artista, no sentido de saber que ele fala tal coisa porque vive e lê a realidade diferente dos meus olhos nessa arena eterna da luta de classes Casa Grande & Senazala, mas preservo e blindo a obra de arte dele nessa hora pra evitar tamanha “sofrência”.

Não nego que já boicotei por um tempo alguns afoitos e vaidosos e decidi virar a página de vez em outros casos, pois não farão a menor falta no meu repertório da faxina. Caetano Veloso, que, junto com o idolatrado salve-salve Chico Buarque, preencheu de sons e de MPB toda a minha adolescência, já foi motivo de inúmeros protestos por suas opiniões contundentes e alardeadas pelos quatro cantos como verdade incontestável. Ele personifica uma gangorra infinita de manifestações, que considero até contraditórias algumas vezes. Lá nos idos de minha juventude rebelde, resolvi abandonar a audiência. E olha que ouço Caetano desde os LP’s – quem não sabe o que é, busque no Google – da radiola da casa da minha mãe. Radiola e vitrola também são termos facilmente encontrados nos sites de busca. E ainda achava disposição para gravar suas canções em fitas K-7 e ouvir nos “modernos” aparelhos de som do tipo três em um.

Mais ou menos de 1994 a 1998, abandonei o baiano, mas nunca a irmã dele. Esta, seja por cantar de dor de cotovelo a Heitor Villa Lobos ou por recitar Fernando Pessoa, não sai da minha playlist de músicas favoritas. Mas o Caetano ficou por quatro anos de molho no meu “discman” (tem no Google também). Até que, em 98, ele lançou o CD “Prenda Minha”. Quando ouvi, tive de soltar um palavrão vindo lá do fundo da alma: não é que infeliz conseguiu descongelar meu coração magoado? Como o homem não fica quieto, ele teve oportunidade de magoar sua fã outras trocentas vezes, mas depois de fazer as pazes pela primeira vez, foi só alegria! Retomei a série “Fina Estampa”, em que Caetano passeou pelos ritmos e genialidades da música latino americana e caribenha, e isso funcionou meio que como um divisor de águas nessa relação da obra com as opiniões do artista. Baixei a guarda.

Acho que tem coisas que os próprios artistas depois se arrependem e ficam quietinhos, não espalham por aí a mudança de pensamento. Não estou nem considerando aquela época dos showmícios, quando era permitido estabelecer essa relação comercial nas campanhas eleitorais. Só o que se pode considerar como manifestação espontânea mesmo. Lembro da Daniela Mercury em Lisboa no ano de 2006 e o recente episódio, em março deste ano, envolvendo a Nana Caymmi. Superadas as devidas consequências e polêmicas, logo o assunto vira passado. Por isso, a menção à “Resposta ao Tempo” que fiz no início.

Mas, vamos combinar, o desprendimento em separar a arte do artista também é um mecanismo ingrato. Um episódio que aconteceu há alguns anos, em um restaurante de Brasília, exemplifica bem esse risco. Paguei mico tamanho, que uma ilustre amiga curitibana que presenciou tudo vai ter história para contar e dar risadas por várias gerações. Estávamos em um restaurante de Brasília, quando avisto em uma mesa próxima nada mais, nada menos que a figura alta, magra e toda de branco do cantor Fagner. – Vamos tirar foto, vamos tietar, não dá pra perder essa oportunidade, convidei. Uma pessoa mais antenada do grupo até alertou na época e tentou impedir. Sem sucesso. Argumentei que li na Antologia Acústica de 20 anos de carreira do Zé Ramalho, lançada há duas décadas, sobre a criação da música “Eternas Ondas”, um mosaico de influências culturais e místicas diversas que o autor fez para ser interpretada por Roberto Carlos. Diante da rejeição do ídolo das carolas e sensibilizado com a trajetória do paraibano por um lugar ao sol, Fagner lançou a música e fez sucesso estrondoso com ela. Tocou em tudo quanto foi canto, não tem quem não a conheça e ela é muito regravada até hoje.

Com esse argumento, fomos em direção ao Fagner para registrar a tietagem. – Com licença, podemos tirar uma foto com você? – Claro, respondeu ele, de onde vocês são? – De Curitiba. – Ah, Curitiba, gosto muito da cidade e tenho um grande amigo lá, revelou super simpático, enquanto dirigíamos nosso melhor sorriso em direção à câmera para reter aquele momento e remetê-lo à posteridade. Foto tirada e o cantor se despede de nós: – Levem meu abraço ao Beto Richa. HELLOOU!!?? Como é que é? Sorriso morreu instantaneamente no rosto, se desmaterializou, virou pó, embarcou nas velas do Mucuripe quando elas saíram para pescar e se perdeu nas águas fundas do mar. Hora de calar mais um palavrão, um tremendo de um palavrão! Quisera ser um peixe para escorrer dali até o Lago Paranoá e encontrar um caminho direto para o oceano naquele mesmo instante. Hashtag #NãoMeFodaFagner!

Soube depois que o Fagner foi filiado ao partido do seu amigo, que foi até cotado para se candidatar e que nos momentos de decisão política, para minha decepção, o cantor sempre se posicionou do lado contrário do que eu considerava ser o certo. A foto jamais foi publicada, sequer saiu da máquina – bendita digitalização! – e aquele abraço do cantor está bem longe de alcançar o destinatário. Foi o segundo momento em que me determinei a separar o artista das suas opiniões políticas e críticas sociais. Até por questão de sobrevivência e para poder ouvir de novo, sem maiores mágoas, ele interpretar “Canteiros”, “Fanatismo” e outras maravilhas do seu repertório. O trauma é inevitável, claro, que possível de ser superado. Basta ouvir a voz tremida do cantor para lembrar da situação. Não foi um mico, mas um King-Kong de infortúnio! Levei quase uma década para contar.

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