21:40TODO AMOR É SAGRADO

por Nilson Monteiro

(maio de 1987)

Este mundão ainda tem jeito. Sinto isto na tua cara, nas tuas mãos, no teu jeito, no teu cheiro, meu amigo. Nos olhos mansos e incendiados da Cleusa. Na conversa miúda de dona Zica, que frita bolinhos e nos embebeda a alma.

Encontrei o meu canto, parceiro, mais um, na esquina da Mauá com a Paraná, nesta cidade de neblina. Aqui, onde se come bolinho de carne molhado com cerveja gelada e conhaque quente ou pinga com mentruz, em meio aos engradados de cerveja e poucas palavras de dona Zica, tenho certeza: este mundão ainda tem jeito.

A alma de Noel nos visita, debochada, traçando aperitivos com o som negro de Milton, aquele mesmo na África e do bairro do Limão, o do Itamar, em São Paulo. É nesta esquina que o vento faz a curva. E as letras dos amigos, feito código universal, chegam, rasgando o peito, chão de ninguém.
Esta estranha mania de ter fé na vida vem no sopro, nas cartas. Em um telegrama do Santigo, que chegou de Londrina, há uma declaração arrepiante de amizade: “O jornal só ganhou com a volta de sua coluna. Espero que você não suma de novo”. Nunca sumi. Sempre estive no ar, no gosto, na saliva, gastando as solas, mastigando chãos, mascando teclas, ligando os cabelos do tempo e das cidades. Eu te digo, Santigo: Drummond tem um corpo pequeno para tanto amor dentro daquele peito. Mas carrega as pessoas como um fardo delicioso. Feito torta de morango.

Ou em uma carta extensa, forte, do Carlos Righi, também de Londrina, Feito pó roxo, denso e apaixonado, Righi dispara: “Um abração deste pé vermelho que não perde uma palavra sua em nenhuma publicação”. Abraço, amigo, feito tamanduá bandeira. Feito a Baía da Guanabara ou o Lago de Itaipú. Feito nada. Feito abraço mesmo. Despido, sem nenhuma ou outras intenções. Apenas esta: a de quebrar os ossos dos amigos. Esta estranha mania de ter fé na vida.

E lá vem dona Zica com pimenta nos olhos. Lá vem ela e serve uma pinga para o cara de mãos engraxadas que nunca leu poesia e nem ouviu falar em João Cabral de Melo Neto. Nem sabe quem foi Vinícius de Morais. Mas faz do dia a dia um verso. De encher os olhos de água, de sal, de lágrimas.

O fôlego veio também de Gregório Sanches, que se confessa meio desiludido com o rumo desse barco. Sabe-se lá, né Gregório, se o porto é seguro ou não? Sei que todo fruto do trabalho é sagrado. Ah, isto sei. E nem preciso fazer discurso para isto. Muito menos virar autor de discurso. E muito menos ator.

Vem também esse ar no telefonema de seu Geraldo. Ele mesmo, o Assunção. Um cara que batalha a vida em nome dos semelhantes., como ensinou aquele barbudo das escrituras sagradas.

Tem jeito sim. Eu vi, dia desses, olhando fundo para o azul nos bosques de Gramado. O vento bate forte primeiro em uma árvore. Depois, noutra. E, a seguir, em outras. E assim desarruma suas cabeleiras. Sibila. Canta, senhor de si e do espaço. Derruba as estrelas. É bonito o vento. Dá medo em generais. Gela o espírito. Traz o bafo daquelas mulheres. E crianças. E homens. E velhos. E novos. E da vida, sendo rachada com esperança, feito madeira para esquentar a lareira. Iluminar. O vento é um pombo-correio. Leva e traz. Senti também na carícia de sua bruma, molhando aos poucos, aos pouquinhos, o último dos ossos. Lá naquela serra mora a luz.

É amigo, há algo mais no ar que as turbinas de aviões. Dá para cheirar isto nos olhos do leopardo, no andar obediente do puma dentro das grades. Ou neste saquinho de pipocas, murchas. Ou na filosofia de para-choques de caminhões. Ou no recado do compadre que está escrevendo em Nova Esperança, compondo em Paranavaí. Uma salada? E o que é esta nossa alma, verde-amarela, azul-roxa, marrom-vermelha, Chororó e Villa-Lobos? Quem responder em um segundo ganha um disco do Chacrinha.

Tem jeito. Escuta, se a tua alma for capaz, o pistom deste dentista que não arranca dentes. Arranca o mais puro som, todo o dia, às sete da noite, enchendo a Rua das Flores da mais pura magia. O mundo para, eu garanto. E o cara lá, do alto do edifício, esparramando notas musicais. Para o curitibano pode ser que tenha virado rotina. Para mim, é um código, um som belíssimo, no coração da cidade, todo dia ele faz sempre igual – às sete da noite. Experimenta ouvir. Mesmo que você esteja em Foz do Iguaçu. Ou em Cianorte. Ou em Londrina. Experimente.

É das Rua das Flores também o som cego das sanfonas desse senhor. Brasileiro, sim senhor. Ele toca para cidade ouvir. Experimente.

Chegou também um bilhete do Dinho. Faz publicidade e toca a vida em Londrina. E outro ainda do Zeca, batucando teclas na sucursal deste jornal, pra lá e pra cá, atrás de discos velhos, antigos, antológicos, com a Elis Regina sob a camiseta. É bonito saber que o Zeca acha que ainda tem jeito. Ou o Jorge Duran, que fez “A Cor de seu Destino”, baita filme. Assistiu? Não perca também “Anjos do Arrebalde”. E “Anjos d Noite”. E não perca, nunca, o filme da vida.

Não perca, amigo, a possibilidade de.

Até qualquer hora.

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Uma ideia sobre “TODO AMOR É SAGRADO

  1. SERGIO SILVESTRE

    Pois é,as vezes desperdiçamos parte de nossas vidas escrevendo textos para patifes políticos recitar,abandonamos nossas convicções e quando percebemos a vida se foi ou falta dois sacos na pilha e será preciso correr ,já cansado para recuperar o tempo perdido.
    Eu voltei a contar os frisos da calçada velha da Rua Guaporé,sobraram poucos frisos,é que não tem mais Cinerama ,e também estou velho demais para contar todos

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