19:08Macaquitos

por Lima Barreto

Um jornal ou semanário de Buenos Aires, quando uma equipe brasileira de football, de volta do Chile, onde fora disputar um campeonato internacional, por lá passou, pintou-a como macacos.

A cousa passou desapercebida, devido ao atordoamento das festas do Rei Alberto; mas, se assim não fosse, estou certo de que haveria irritação em todos os ânimos.

Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, senão pai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos pode causar vergonha.

A França, isto é, os franceses são tratados de galos e eles não se zangam com isto; ao contrário: o galo gaulês, o chantecler, é motivo de orgulho para eles.

Entretanto, quão longe está o galo, na escala zoológica, do macaco! Nem mamífero é!

Quase todas as nações, segundo lendas e tradições, têm parentesco ou se emblemam com animais. Os russos nunca se zangaram por chamá-los de ursos brancos; e o urso não é um animal tão inteligente e ladino como o macaco.

Vários países, como a Prússia e a Áustria, põem nas suas bandeiras águias; entretanto, a águia, desprezando a acepção pejorativa que tomou entre nós, não é lá animal muito simpático.

A Inglaterra tem como insígnias animais o leopardo e o unicórnio. Digam-me agora os senhores: o leopardo é um animal muito digno?

A Bélgica tem leões ou leão nas suas armas; entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco – é verdade – não tem préstimo; mas é frugívoro, inteligente e parente próximo do homem.

Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nós demonstramos muita simpatia por esse endiabrado animal.

* Escrita há quase cem anos, a crônica “Macaquitos” revela-se extremamente atual, pois faz lembrar as inúmeras ofensas racistas presentes nos jogos de futebol nos dias de hoje, em que desportistas negros são equiparados a macacos. Tal associação é antiga, remete às toscas justificativas da escravização, pelas quais a África estaria, no dizer de Hegel, excluída do mundo civilizado. E mesmo após a proibição do regime, no caso brasileiro com a publicação da Lei Áurea, os estereótipos redutores persistiram vivos no imaginário social, sobretudo das classes dominantes formadoras de opinião. Ao longo do século XX, inúmeras produções culturais – no cinema, na música, no teatro, na literatura, entre outras – insistiram em animalizar os afrodescendentes através da reprodução de figurações desumanizadoras. Nesse contexto, o escrito de Barreto revela-se como refinada provocação aos discursos da superioridade racial, ao desconstruir um de seus signos de maior relevo. Ao colocar o macaco em posição de superioridade no reino animal, o cronista não apenas relativiza o sentido pejorativo presente no insulto, mas põe em prática seu projeto de literatura militante, oposta ao texto meramente contemplativo ou de entretenimento, para fazer da imprensa uma tribuna de combate à discriminação racial.

* Crônica publicada na revista Careta, em 16 de novembro de 1921.

 

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2 ideias sobre “Macaquitos

  1. Zangado

    Afinal, o grande Lima Barreto nos lembra, humanos somos para as mesmas idiossincrasias.

  2. jorge

    Um velho amigo, psicanalista, dizia que achava que o homem é um macaco que deu errado

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