6:52Com a corda no pescoço

por João Pereira Coutinho

Vamos imaginar que, em 2003, quando George W. Bush decidiu invadir o Iraque para promover uma “mudança de regime”, um qualquer assessor da Casa Branca dizia: “Senhor presidente, boa sorte. Não se esqueça que, segundo a lei, o senhor deve estar no terreno com os homens, marchando contra o inimigo”.

Será que Bush teria avançado na mesma? Ou pensaria melhor sobre as consequências das suas decisões?

Refinando mais um pouco: estamos ainda em 2003. Os conselheiros neoconservadores do presidente apoiam euforicamente a intervenção militar.

George Bush, seguindo outra lei imaginária, lembrava aos seus conselheiros que eles seriam os primeiros a partir. Para dar o exemplo. Será que eles teriam defendido a opção militar com a corda no pescoço?

As perguntas respondem-se por elas próprias. Porque esse é um dos dramas da política contemporânea: os responsáveis pelos maiores desastres nunca “arriscam a própria pele”, para usar a expressão que dá título ao mais recente livro de Nassim Nicholas Taleb (“Skin in the Game”). Pior: o custo desses erros é sempre transferido para terceiros.

O Iraque é um caso. A Líbia é outro: em 2011, os intervencionistas decidiram derrubar Muammar Kadafi. Um torcionário? Sem dúvida.

Hoje, vendem-se escravos no país como se fossem produtos agrícolas. Se os intervencionistas também estivessem à venda nos mercados líbios, será que haveria menos intervencionistas no mundo?

Taleb tem razão. “Arriscar a pele” não é apenas um imperativo de responsabilidade política. É também uma forma preciosa de conhecimento: só aprendemos por tentativa e erro. Quando não há nenhum preço a pagar pelos nossos erros, que estímulo existe para acertar?

Estímulo nenhum. É por isso que os grandes intervencionistas são incapazes de pensar, muito menos de antecipar, as “segundas fases”.

A cabeça do intervencionista, perante sistemas complexos e opacos, é sempre unidimensional: derrubar Saddam Hussein = boa medida. Se isso implica violência sectária que dura até hoje; destruição do equilíbrio regional entre Irã x Iraque; formação do Daesh e outras ruínas semelhantes, o intervencionista já vai longe.

Taleb faz uma boa comparação: é como um médico que, para baixar os níveis de colesterol do doente, injeta o desgraçado com células cancerígenas “moderadas”. Ele mata o paciente, lógico, mas os níveis de colesterol nunca estiveram tão controlados.

Mas não são apenas os políticos que, salvando a própria pele, acabam por sacrificar a pele dos outros. Taleb tem um capítulo especial para os “intelectuais mas idiotas”. Falamos de gente que gosta de dizer aos outros o que fazer, o que comer, como falar, como pensar, em quem votar etc.

No fundo, Taleb fala da “intelligentsia” que dá aulas na universidade, pontifica na TV, escreve colunas nos jornais —sempre em circuito fechado, sem contato com o mundo real.

É óbvio que me revejo nesse espelho. E é óbvio que o próprio Taleb, sem o admitir (onde está a coragem, companheiro?), também conhece o mesmo reflexo.

A diferença, creio, é que embora eu concorde com Taleb sobre a distância problemática que separa os intelectuais das massas, não compro na totalidade o seu anti-intelectualismo.

Em primeiro lugar, porque existem formas de anti-intelectualismo que me parecem tão paternalistas como as piores formas de intelectualismo: a velha ideia, no fundo, de que o reino dos céus pertence aos pobres de espírito.

Em segundo lugar, porque também existem “não-intelectuais mas idiotas”, uma evidência que escapou a Taleb. O mundo está povoado deles: selvagens cheios de som e fúria, mas incapazes de exibir uma racionalidade correspondente.

Esses “não-intelectuais mas idiotas”, às vezes, são bem capazes de provocar danos maiores na sociedade do que aqueles que os maléficos professores universitários defendem ou praticam.

Por último, e paradoxalmente, Taleb parece desconhecer que o anti-intelectualismo sistemático é também uma forma de intelectualismo. Um plano para acabar com os planos não deixa de ser um plano também, como escreveu o filósofo inglês Michael Oakeshott sobre o seu contemporâneo Friedrich Hayek.

Concordo com Taleb: na vida política ou intelectual, nada substitui a experiência pessoal e a responsabilidade que só existe quando “arriscamos a pele” pelas nossas convicções.

Mas não vale a pena jogar fora o bebê com a água do banho, destruindo bibliotecas ou universidades. Tentar ser “intelectual mas menos idiota” já me parece um bom programa.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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2 ideias sobre “Com a corda no pescoço

  1. SERGIO SILVESTRE

    Esgotou as guerras nos países árabes,os americanos levaram a liberdade que todos estão vendo nesses países e alguns americanos corados de vergonha se manifestam negativamente.
    Ali só restaram escombros e um povo que perdeu tudo,enquanto as grandes empresas americanas incham sua economia com esse traste do Trump se impondo como jumento estadista.
    Me parece que agora querem fazer aqui perto,começando pela Venezuela e vai se alastrando onde tiver petróleo e aqui não falta vendilhões,temos um presidente que apoia e tudo parece caminhar para isso.
    Mas primeiro tem que co,binar com os Russos e Chineses,ai a coisa é mais embaixo.

  2. Anônimo

    O escritor e jornalista português suscita reflexões que não estão ao alcance de grande parte da população, mesmo da (supostamente) instruída. Chavões e palavras de ordem mobilizam as massas mas não solucionam problemas. Soluções simples para problemas complexos não existem ou costumam acabar mal…

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