6:38Adeus, Constituição

por Mário Montanha Teixeira Filho

Os trabalhos legislativos que antecederam a entrada em vigor da Constituição de 1988 foram cercados de grande expectativa. Num período de expansão do neoliberalismo em várias partes do mundo, a sociedade brasileira se preparava para sepultar de vez a ditadura instaurada em 1964. Essa combinação aparentemente contraditória entre o avanço dos movimentos populares, que influenciou os debates constituintes, e a expansão da ideia de enxugamento do Estado, que provocaria, logo depois de promulgada a Carta “cidadã”, ataques a direitos individuais e coletivos, resultou num documento em que princípios democráticos conviveram com velhas práticas clientelistas.

Em sua redação original, o texto aprovado pelos constituintes apresentou muitas lacunas e dispositivos de eficácia contida, abrindo campo para a intervenção do Poder Judiciário no estabelecimento dos seus efeitos. Como era de se esperar, o esforço hermenêutico promovido por senhores de toga, pompa e circunstância, costumeiramente sensíveis aos interesses dos donos do capital, fez com que as cláusulas sociais previstas na “nova ordem” fossem discretamente arquivadas.

Numa palestra que realizou em 2008, publicada na “Revista Socialismo e Liberdade” dez anos depois (nº 23, Fundação Lauro Campos, 2018, p. 61-64), Plínio de Arruda Sampaio, ex-deputado constituinte morto em 2014, situou a Constituição de 1988 num processo em que “o povo, que estava sem direitos, iria ganhar algumas concessões, mas nada capaz de frear o que já estava estabelecido”. Era necessário, para os grupos conservadores com representação no parlamento, “incorporar um pouco da massa”. Foi a partir dessa constatação que se criou uma novidade: “A Constituição não começou como um texto pronto – como foi feito pelo professor e deputado da UDN Mário Masagão, em 1946 – e depois sujeito a emendas do plenário, [mas] ela começou com 24 comissões temáticas”.

“A presença do povo nos corredores [do Congresso Nacional] e nas ruas, e a chegada de emendas populares deixaram a burguesia perplexa”, completou Sampaio. “Nós fizemos uma Constituição parlamentarista, programática, para criar um Estado de bem-estar social, mas esse projeto não passou no primeiro tempo porque, no segundo tempo, os homens da burguesia chamaram os deputados e disseram que ‘isso não pode, não’. Então, se formou um negócio chamado Centrão, e ele derrotou a todos. Mas o peso do povo era tão grande que não foi possível tirar tudo”. Em outras palavras: apesar das investidas do Centrão e das emendas que vieram nos anos seguintes a 1988, a Constituição assegurou, entre outros avanços institucionais, direitos trabalhistas e garantias vinculadas ao processo penal, além da universalização do sistema de saúde, assistência e previdência.

Os últimos três anos, porém, foram avassaladores, marcados pela crise política que afastou do cargo a ex-presidente da República Dilma Rousseff, substituída por Michel Temer, um chefe de Estado ilegítimo e sem carisma, encarcerou Lula, o candidato que detinha, em 2018, a preferência dos eleitores que acreditavam no seu retorno ao poder, e elegeu Jair Bolsonaro, símbolo da truculência e da boçalidade, para tomar conta do País. Nesse cenário de pouca luz, a Constituição – ou que restava dela – desapareceu. Direitos elementares foram banidos do ordenamento jurídico, num esquema de legitimação da precariedade do emprego e do semi-escravismo, complementado pela obsessão do “mercado” em aprovar a contrarreforma da Previdência, um conjunto de normas que lançará velhos e moços, aos milhões, na miséria absoluta. Um horror.

Na esteira da Lava Jato e sua retórica moralista, a ordem de agora é suprimir garantias processuais, prender em nome da “vontade do povo”, criminalizar as organizações populares, esmagar as minorias e espalhar armas. É autorizar meganhas ou milicianos a atirar primeiro e perguntar depois. É excluir da convivência social pretos, pobres, mulheres e LGBTs, vítimas preferenciais da violência estatal. É retroceder em conquistas civilizatórias para que os cidadãos “de bem” possam estar em paz, numa democracia feita da eliminação das diferenças, e não do convívio com elas.

O Brasil contemporâneo é um país obscurantista, em que a Constituição – documento que deveria ser preservado, com seus méritos e suas limitações – sumiu, convertida em adorno da burguesia, governado pela ignorância e pelo medo, sob a proteção de deuses de mentira, da pavonice de magistrados supremos e de barganhas congressuais (o Centrão atual, percebe-se, é muito pior – e assustadoramente mais eficaz – do que o Centrão constituinte do final dos anos 1980). Um país triste, como foi no passado recente, em que tanques, torturas e atos institucionais destruíram sonhos de gerações que se sucederam.

Nada vai bem, mas há muito a fazer. O drama social e político que mancha de sangue a história brasileira deixará sobreviventes. Serão eles os destinatários da tarefa de começar tudo outra vez.

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5 ideias sobre “Adeus, Constituição

  1. Jose

    Excelente texto sobre a nova constituição cubana…
    Inclusive eles, os poderosos de lá, removeram a parte sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo, este ícone da luta do povo progressista de esquerda. Ah, a propriedade provada agora é permitida também, que evolução não?
    E para quem não leu, sugiro acessar o glorioso “granma.cu” . Está lá na íntegra.

  2. jorge

    Teria sido melhor não ter escrito esse artigo.
    A esquerda marxista não se toca que só produziu miséria e genocídios.

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