8:24Descida na decadência

por Mario Sergio Conti

Foi João Carlos Saad quem melhor expressou o sentimento pesado, misto de iniquidade e torpor, provocado pelas catástrofes deste início do ano. Na segunda-feira, o presidente do Grupo Bandeirantes disse: “Quando terminarmos de investigar este caso, vamos encontrar um fio condutor entre essas tragédias”.

Saad se referia à ruptura da barragem da Vale, ao incêndio no alojamento do Flamengo e à morte, horas antes, na queda de um helicóptero, do jornalista Ricardo Boechat.

Melancólica, a assertiva dispensou os consolos do acaso, que produz crendices do tipo “o Brasil precisa se benzer!”. Para Saad, as mortes em Minas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, os estados mais ricos da federação, foram produto “de coisas inadequadas que vêm acontecendo”.

A inadequação não começou ontem nem veio do além. O Brasil real está em descompasso com autoimagens idílicas, difundidas durante décadas. Temos empresas de ponta, dizia-se, tão admiráveis quanto as melhores do mundo: a livre iniciativa forjará o progresso e o futuro.

Ei-las, as ilhas de excelência. A Petrobras desviou porrilhões de dólares. Viva o pré-sal. A Odebrecht comprou políticos urbi et orbi. Viva a engenharia nacional. A JBS privatizou a política. Viva o agronegócio. A Vale intoxicou o rio Doce. Viva a preservação do meio ambiente.

Há mais. Firmas lideradas por seres iluminados, como a Abril, a Cultura e a Saraiva, empulharam funcionários e fornecedores. Seus donos deram golpes na praça, mas não se diz mais “falência fraudulenta” —o chique é “recuperação judicial”. Resolve-se tudo com tagarelice e tribunais.

Mais, ainda. O futebol, circo eletrônico que compensa o pouco pão, e mofo, é arena de cartolas como os do Flamengo, cujo domador-mor se faz chamar de CEO, Chief Executive Officer. Escolas de samba e igrejas, hoje empreendimentos de arte & religião, são ingênuos, pios?

Resta o consolo dúbio que corrupa, desleixo e má-fé não são apanágio verde-amarelo. Samurai da Renault-Mitsubishi-Nissan, Carlos Ghosnestá preso há três meses. Google e Facebook, Big Brothers do mercado online, são alvo de protestos e processos. A Fifa é a CBF globalizada.

Com a queda da taxa de lucro, e as sequelas sociais de uma crise que vai e volta há uma década, tornou-se regra a concorrência desonesta e selvagem. Desde há 30 anos, quando caiu o Muro, a economia não tem alternativa à vista ou em potencial. Contudo a história não chegou ao fim.

Aumentaram as calamidades ambientais, os surtos climáticos extremos, a imundície urbana e industrial, a esterilização da natureza e o aquecimento planetário. Mas cresceu a consciência de que a Terra se esgota de modo convulsivo —a humanidade pode provocar o apocalipse.

Incêndios e inundações, porém, não originaram uma utopia. Como disse o crítico Fredric Jameson: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Sem expetativas, não há esperança. Como a experiência histórica coletiva conta pouco, somos condenados ao presente.

Um presente de “coisas inadequadas”, de decadência, de produção não do futuro, mas de ruínas. Não que o passado fosse bom —longe disso— ou que o presente lhe seja superior. No sentido etimológico, a decadência se explica pela raiz da palavra latina que lhe deu origem: “cadere”, cair.

No sentido jurídico, decadência significa perda de direitos. Se o sujeito é levado pela inércia, pela repetição automática do estado em que se encontra, seja ele parado ou em movimento, seus direitos prescrevem. A inércia comanda nossa queda livre no presente vazio.

Acelerando sem parar num túnel vertical infindável, os brasileiros são despidos de seus direitos —no vento vão retalhos velhos. Seus líderes lhes garantem que, se continuarem a cair, se trabalharem por anos e anos sem descanso, se estatelarão de felicidade no fundo do poço.

No sentido estético, estudado por Nietzsche e Lukács, decadência quer dizer desintegração do sentido e atomização da sociedade. Ou seja, a incompreensão provocada pela perda do sentido comunitário —em favor de um individualismo impiedoso, de uma solidão sem misericórdia.

No sentido teológico, a decadência é atributo de um dos sete pecados capitais do catolicismo, a acídia. Arma do Anticristo, a acídia corrói a vontade, gera indolência, indiferença, impotência e, uma vez mais, inércia.

O Anticristo só pode ser vencido pelo Messias. Ele é o único capaz de pôr fim a séculos de letargia, à estagnação. Mas não há mais redentores.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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Uma ideia sobre “Descida na decadência

  1. SERGIO SILVESTRE

    Operação policial em Londrina e o comandante dando entrevista ,se gabava que na operação multou 36 carros por não pagamento de IPVA e aprendeu 4 maquinas caça niqueis.
    Eu ouvi,e quase chorei,por que na subida da minha casa até a casa da minha sogra,eu conto sem sair do carro dezenas dessas maquinas,e nem precisava ter 200 homens nas operações.
    O Brasil padece de corrupção generalizada em fase terminal,e todo vetor está na célula que deveria debelar esse tumor.
    Noto que nós temos sim um MP que age com uma arrebatamento até desmedido,mas depois se acalmam e ficam pianinhos como se nada ali tivesse acontecido.
    É só olhar nosso sistema e como ele funciona para alguns e como ele é generoso para outros,e assim o sistema continua cada vez mais nutrindo essa doença que foi instalada.
    E quando colocam ali uns trocados com emblemas de corporações e nós nos enchemos de orgulho ,não sabemos que por traz de tudo isso é uma encenação para enganar incautos,e assim segue o barco cada vez com mais furos e a água tomando conta.

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