20:28O filho de Alegria

de Rogério Distéfano, no blog O Insulto Diário

O pequeno Davi Alcolumbre derrotou o gigante Renan Calheiros, Golias das Alagoas, na disputa pela presidência do Senado. Ao invés de funda, Davi usou a urna como arma. Por que a analogia? Por uma razão simples e que passa a excitar fantasmas e paixões soterrados no inconsciente coletivo: Alcolumbre é judeu. Mais que isso, judeu comerciante. Ou seja, reúne os dois defeitos que o preconceito atribui aos judeus – como se o comércio fosse atividade privativa de judeus.

Alcolumbre tem pressa. Vide a curta carreira no Amapá, pontuada por mandatos de dois anos de vereador e dois de deputado federal. Aos 41 anos, pode-se-lhe prever longa carreira, tão longa quanto a história de sua família, judeus sefarditas espalhados pela diáspora espanhola do século XV, ordem da rainha Isabel I, de Castela, a Católica. É filho de dona Alegria, nome de coisas boas, comum entre as mulheres sefarditas: Ouro, Amora, Mel, Fortuna e outros votados para o bem.

Um judeu na presidência do Senado, faz diferença? Esqueçamos o aspecto político. A validade da eleição não está definida, há evidências de fraude. Mas faz diferença para os antissemitas, tanto os de raiz quanto os utilitários, que assumem o discurso do preconceito devido à proximidade do senador com Jair Bolsonaro. As duas extrações começam a sugerir conspirações. Coisa tão velha quanto falsa, como a Conspiração dos Sábios de Sião, o caso Dreyfuss, na França, até o Plano Cohen, do Brasil.

A embaixada em Tel Aviv será uma delas – que Alcolumbre, se tiver juízo e noção, tentará impedir. Essa pauta é dos evangélicos, de Jair Bolsonaro, de Binyamin Netanyahu e de uma minoria de judeus dominado por obscuro, distante e impraticável imaginário de fazer o Brasil satélite de Israel. O brasileiro, seja ele gentio ou semita, perde com a transferência da embaixada. Há maiores coisas em jogo que a mudança da embaixada – medida adotada pelo caprichoso presidente dos EUA, só ele.

É questão cultural: historicamente os judeus evitam a exposição. Na experiência milenar de perseguições aprenderam que a exposição traz consigo a inveja que, até o Holocausto, fez deles o bode expiatório dos males sociais. Quem conhece a História, ainda que de modo superficial, sabe que isso acontece desde que em 586 AEC, Nabucodonozor os levou de Jerusalém como escravos para a Babilônia. O Google está aí para quiser quer conferir.

O antissemitismo existe desde que Abrão saiu da Caldeia, milênios antes de Cristo, a pia batismal do preconceito. Mas passou o tempo em que os judeus tinham cidadania pela metade, como na Alemanha imperial, na Rússia czarista, na Polônia pré comunista. Hoje têm cidadania plena, podem – e devem – exercê-la, ainda que sob o risco do preconceito e das teorias conspiratórias. No Brasil, poucos judeus foram eleitos, e todos fora da base étnica, de suas comunidades.

Com 108 mil na população brasileira não há judeus suficientes para fazer uma bancada judaica. Nem no Amapá e cercanias do Norte, de onde vem nosso senador, ainda assim não eleito por judeus. Por obra e desgraça da ditadura militar para enfraquecer o Sudeste um senador do Amapá se elege com menos votos que um vereador de São João do Triunfo. Por isso que os judeus eleitos no Brasil não carregam plataformas judaicas. Elas não existem. Não têm como existir.

Os judeus não são eleitos na condição de judeus, mas na de brasileiros, com história e inserção políticas. Foram judaístas, de viés filo-judaico, o prefeito do Rio, Israel Klabin; Jaime Lerner, prefeito e governador no Paraná; Jacques Wagner, governador da Bahia? Celso Lafer, foi chanceler antipalestino, pró Israel? Se acertaram, bom para eles, se erraram, pior para eles. Para os judeus brasileiros no pincha ni corta, não fede nem cheira, num espanhol meio sefardita.

A eleição – ainda não definida – de Alcolumbre incomoda o antissemita, que perdoa no gentio aquilo que reprova no judeu. Quando descobrirem que o ministro Luiz Fux, do Supremo, é judeu será um deus-nos-acuda. Pronto, o Insulto acaba de entregar um judeu que se esconde sob a peruca. Diria a esses antissemitas que o ministro Fux vale tanto quanto o ministro Ricardo Lewandowski, que nasceu gentio, cresceu petista e tem raízes na Polônia, onde os judeus viviam em guetos, perseguidos.

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