6:58O egoísta gravitacional

por João Pedro Bara Filho

Dizem que eu sou um cara egoísta; egoísta, prepotente e esquisito. Egoísta e prepotente posso até concordar, mas esquisito não sou. Se esquisitice é dizer verdades, logicamente aquelas em que acredito piamente me expondo inclusive ao ridículo, então tudo bem, vamos em frente.
Digo o que penso e não tenho filtros. Numa batalha você tem que avançar, porém sem se descuidar da retaguarda, assim levo a vida. Da minha história ninguém conhece sequer a metade, e com minhas maiores verdades vou com elas até o túmulo. Isso lhes parece esquisito?
Já não sou mais criança, acabo de passar pelos setenta. Moro sozinho na casa que é minha e do meu irmão mais novo; eu, meu equipamento de som importado de altíssima fidelidade, minhas dezenas de quadros e os móveis seculares que pertenceram aos meus avós. As paredes da sala não conseguem respirar tantos são os quadros, e tudo se assemelha a um museu decadente, até no cheiro dessa velharia toda que se espalha pelos cômodos e que me provoca um certo calafrio frequente. Acredito ser por causa de uns espíritos que me rondam e gosto disso, pois preenchem a decisão irreversível de uma vida solitária. Novamente, seria esquisitice?
Eu e meu irmão mais novo viemos morar aqui nessa casa, dos avós maternos, quando nossos pais morreram num acidente de carro quando voltavam de um casamento em Campinas. Meu avô era muito tranquilo, relojoeiro, já minha avó autoritária e impaciente. Eram imigrantes alemães.
Há quase dez anos não tenho notícias do meu irmão, porque ele era comunista e se exilou na Rússia antes que o prendessem, acho que ainda deve estar por lá. Nós somos totalmente diferentes. Ele é um sonhador, cheio de utopias. Eu sou totalmente racional e pé no chão.
Relacionamentos amorosos já tive vários, alguns mais efusivos e apaixonados que perduraram por quase um ano. Aliás, um ano, no meu caso, é o tempo máximo antes da expiração do prazo de validade. Eles começam sempre na primavera, verão, outono e findam no inverno. Nascem belos como as flores e morrem decrépitos em meio ao tédio invernal. Perfeito, porque sempre surge um novo caso, e como considero a monogamia um mal terrível quase nunca me escuso.
Além do mais, como nunca quis ter filhos, jamais cogitaria em me casar. Esconjura. Filhos pra que? Pra se angustiarem com a mesma dúvida existencial de todos nós?
Por falar em filhos, quem já presenciou um parto sabe que só mesmo sendo fêmea e masoquista pra suportar. Aí a natureza nos inventa uns brutamontes sádicos pra equilibrar essa relação entre os sexos. Aliás, não entendo por que a natureza nos impele obsessivamente a procriar, esse verdadeiro entrave na relação para tantos casais. Será que eu não estou ovulando? Será que meu espermatozoide é preguiçoso? De quem é a culpa? Da natureza, é claro.
Não sei se vocês estão acompanhando meu raciocínio, mas não me dou muito bem com as coisas ditas naturais. Sabem, como sou engenheiro entendo que todos os fenômenos e eventos universais físicos, astrofísicos, químicos, moleculares, atômicos, metafísicos etc. e tal tendem a se equilibrar e se neutralizar nessa louca equação proposta pela natureza. Concordo, porém não aceito essa equação simplória. Existir não é uma coisa assim tão simples e banal.
Se tudo no universo está em equilíbrio constante a soma sempre dá zero, porque mais com menos do mesmo valor é igual a zero. Deu pra sacar? Ação e reação, luz e trevas, troca de energia constante, em última instância, vida e morte. Complicado, né? Mas tenho certeza de que na natureza absolutamente tudo funciona assim. Acaba funcionando tipo precariamente, por isso continuo não aceitando. Talvez deus não acerte sempre nos dados que ele joga, né?
Apesar de ser muito inteligente também não sei como explicar direito esses fenômenos, não sou astrofísico, nem físico nuclear e muito menos obstetra, mas que já vi bebe nascer isso eu já vi, ao vivo. Isso sim é esquisitíssimo!
Por falar em bebe, parece que nasci uma criança hiperativa, porque me recordo que meu avô me dizia que eu parecia o ponteiro dos segundos do relógio. Ele tentava me acalmar, dizendo que quando eu crescesse um pouco mais me tornaria o ponteiro dos minutos, e depois, na velhice, o das horas. E que eu aprenderia a distinguir se era precisamente meio-dia ou meia-noite quando os três ponteiros apontassem para o céu. Dito isso ele sorria. Acho que meu vô Miller, além de relojoeiro, era um sábio e também um poeta. Ainda tenho gravado na memória muitas coisas que ele me dizia, e também o seu sorriso.
Falando de novo em bebe e nascimento, não sei se todos concordam que viemos do macaco, certo? Acho que alguém já criou uma tal de teoria da evolução natural da espécie, dizendo que ela é lenta e gradual, como a democracia. Eu concordo só mais ou menos com isso, mas deixa pra lá. Só sei que o fulano não soube explicar como além de descascar banana, aprendemos relativamente tão depressa a raciocinar e a termos consciência. Isso foi um salto e tanto, né? Então preparem-se porque vou expor minha revolucionária teoria. Espero que vocês se esforcem para acompanhar meu raciocínio, ok?
Num belo dia, a natureza, num gesto aleatório, inconsequente e por pura diversão, criou um macaquinho simpático, o mico. Ele foi crescendo e de tanto comer banana e fazer exercício físico (não necessariamente intelectual) virou um macacão forte e voraz. Aí, deixou de ser vegetariano e se tornou um carnívoro contumaz. Isso foi desastroso porque algum macacão contraiu então um vírus ou uma bactéria, não sei precisar porque não estava lá, que provocou uma violenta epidemia de meningite na macacada toda.
Os poucos macacos sobreviventes tiveram uma reação violenta à epidemia e apresentaram um crescimento absurdo do cérebro, quando então os neurônios se
multiplicaram numa velocidade assombrosa. Desse modo surgiram nossos primeiros ancestrais “inteligentes” e “cônscios”.
Quando exponho essa minha teoria todo mundo acha que é uma brincadeira e faz galhofa. Só que eu falo sério e fico indignado, e isso soa muito, muito esquisito mesmo!
Mudando de assunto, tinha um colega meu quando a gente ainda não tinha se aposentado, o Fagundes, bem mais velho e que dessa já se foi para melhor, que dizia assim pra mim: quando você tiver a minha idade e tiver que optar entre uma boa trepada ou um bom queijo, com certeza vai ficar com a segunda opção. Amigo, o queijo é o supra sumo do divino dos alimentos e uma benção conferida aos mamíferos. Aí a gente seguia a pé até o mercado da Lapa pra comprar um monte de queijos e vinhos.
Mas só pra contrariar, eu falava pro Fagundes que era o pão o alimento bíblico sagrado, a hóstia santa, e ele refutava: mas o pão é feito com água, eu estou falando de leite e de queijo. Então eu retrucava: só que tem também o pão de leite, né? Além do mais, sem água não tem teta que produza leite. E nós ríamos pra valer. Naqueles tempos a gente se divertia muitíssimo por qualquer bobagem. Peço que não estranhem a presença do Fagundes, ele era quase tão inteligente quanto eu e só por isso ficamos ótimos amigos. Tenho saudades.
Mas voltando a falar de sexo, não sei se vocês prestaram atenção nos parágrafos anteriores, porque sexo foi, é e sempre será a minha maior obsessão. Aconselho aos poucos que me ouvem que devemos sempre pecar pelo excesso e nunca pela falta ou omissão, já que um dos grandes males que assolam a humanidade é a tensão causada pela abstinência sexual. Pode parecer exagero, mas acreditem que tudo funcionaria bem melhor se o regime vigente fosse o da libertinagem. Bem melhor que o comunismo.
Atualmente frequento uma casa de massagem pra onde vou a pé, é longe, e nessas minhas preliminares vou me masturbando mentalmente e comendo minhas barrinhas de chocolate meio amargo pelo caminho. Foi lá nessa putaria que conheci a Beatriz, 23 anos, Bia para os íntimos, e são inúmeros os íntimos dessa talentosa profissional.
A Bia é esperta, ajuizada, bom caráter, e está juntando dinheiro para realizar o sonho da casa própria. Já teve até proposta de casamento de um gringo, mas recusou porque achou arriscado sair do país com um gringo desconhecido, no que fez muito bem. Eu não disse que ela é esperta e ajuizada?
Então, anteontem levei meus exames ao gastroenterologista porque andei evacuando sangue e foi constatado um câncer no intestino. Ótimo, já sei qual será minha causa mortis.
Agora o oncologista quer que eu me submeta a uma cirurgia seguida de quimioterapia, o que, obviamente, eu não vou fazer, ni l’un ni l’autre chose.
Sabem, eu detesto hospital, bisturi, náusea e, principalmente, ingerir veneno. Vou fingir que estou ótimo. Estou ótimo! Disse isso para o médico, esses seres que têm o ego
maior do que artista de Hollywood, e ele achou que essa decisão, na minha idade, até que parece bastante razoável. Isso sim é esquisitice das mais paradoxais.
Lógico que tenho pensado na morte iminente e meditado sobre isso. Inclusive estabeleci uma premissa, a qual intitulei de “Postulado Número Um Sobre a Morte”, e que estabelece assim: “quanto mais o homem se aproxima da própria morte, mais próximo ele está de compreender o verdadeiro significado da vida”. Nem todo o homem, entendam.
Não sei se terei tempo de desenvolver o postulado número dois, porque ele é muito mais complexo, mas estou pouco me lixando pra isso: a humanidade não está fazendo por merecer os meus conhecimentos filosófico-existenciais.
Os proliferados e disseminados imbecis não vão constatar, nessa aparente simplicidade, quanto existe de profundo e assertivo no meu primeiro postulado. Vejam. Quando digo a “própria morte” é porque dane-se a morte dos outros. Desde a feroz competição dos milhões de espermatozoides para alcançar o único óvulo, a individualidade e o consequente egoísmo são marcas registradas dos seres viventes. O óvulo fica lá dando tchauzinho e abanando a calcinha, enquanto os espermatozoides se acotovelam nessa corrida maluca e desumana. Quanta brutalidade meus caros.
A Bia me aconselhou a comprar um cachorrinho pra me fazer companhia. Ela adora bichinhos. Eu detesto. Vejam os senhores que as pessoas hoje em dia estão se relacionando mais com bichos do que com outras gentes. Essa é a prova definitiva de que estamos regredindo assustadoramente. Não que a humanidade tenha alcançado um nível de desenvolvimento intelectual espetacular, mas chamar bichinho de meu filhinho já é demais, concordam?
Como tudo na história desse nosso planetinha ridículo é cíclico, estejam certos de que muito em breve deixaremos de raciocinar, e consequentemente até de falar. Alguns mais disléxicos vão grunhir, outros irão latir ou miar. Voltaremos então à era dos tacapes e eu espero estar bem longe daqui.
Dito isso, resolvi que vou perguntar pra Bia se ela topa se casar comigo de papel passado. Aí a gente vai viajar de montão, caminhar na praia no inverno e percorrer lindas trilhas nas montanhas no verão, porque não gosto nem de calorão e muito menos de friagem. E, como já disse, adoro caminhar porque me mantém em contato com o chão, além de iluminar ainda mais minhas brilhantes ideias.
Como a Bia já está na vida há três anos e ainda não realizou o sonho da sua casinha, posso deixar pra ela metade da minha moradia, ou talvez a casa inteira se meu irmão ainda for comunista, além da pensão da minha aposentadoria. Nada mal, hein?
No fundo, bem no fundo, nem sou um cara assim tão egoísta. Só que em contrapartida a Bia terá que vir morar comigo pra me dar amparo não sei por quanto tempo. Um ano, ano e meio talvez, quem sabe, aí supero minhas marcas anteriores.
Já é um propósito de final de vida aceitável, não acham?
Torçam por mim, e pela Bia.

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3 ideias sobre “O egoísta gravitacional

  1. esiani portes

    Caro João Pedro , bom domingo, boa semana, bons meses, bom texto de sua vida…

    Lúcido e realista octogenário, como deveríamos ser todos que já estamos ou marchamos com celeridade para aquela quadra da existência em que nosso passado é muito, mas, muito mesmo, mais longo que o nosso futuro, estatisticamente falando. Quem viver, verá!!!
    Parabéns, J. Pedro.
    Você reproduziu quase tudo que eu gostaria de expressar.
    Assino embaixo.

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