por Ricardo Araújo Pereira
Queria participar sem aplaudir, até porque nunca soube bater os cascos desse modo
É o seguinte, doutor juiz: não foi de propósito. Eu sou um democrata. Sou mesmo. O povo votou nele e eu respeito. Não teria sido a minha escolha, mas compreendo. Tenho de me esforçar bastante para compreender, mas compreendo.
Sei que há muita gente que votou nele apesar do que ele diz, e não por causa do que ele diz. Nos Estados Unidos aconteceu o mesmo. Seria absurdo que o mesmo povo tivesse votado duas vezes num presidente negro e subitamente tivesse descoberto que afinal era racista.
Claro que houve muita responsabilidade de quem perdeu a eleição. Lá e cá. Em ambos os casos, os adversários deles cometeram erros muito graves —e parecem não ter percebido ainda que os cometeram.
Portanto, ele foi eleito democraticamente, e eu não concordo mas aceito. É assim que funciona. Agora quero é trabalhar, comer o meu feno descansado e —o que também é democracia— fazer oposição. Contestar tudo aquilo de que discordo. Mesmo que não seja politicamente correto.
Espero que seja possível. Porque não faz sentido criticar o politicamente correto dos outros e depois impor o nosso, não é mesmo? Então é isso: não há vacas sagradas. Nenhumas. Ele acha que gays, negros e índios são responsáveis pelo estado do país? Força. Eu discordo.
Não tenho visto muitos gays, negros e índios no governo. Acredito que a gente ainda venha a descobrir que há inúmeros gays, negros e índios na Lava Jato. Mas, até lá, continuo a achar que a responsabilidade deles é bastante limitada.
Também não acho que a corrupção seja patrimônio da esquerda. Se há coisa verdadeiramente democrática no Brasil, é a corrupção. Gente de todos os quadrantes políticos participa. É o grande consenso nacional. Mas eu ia deixar de lado essas e outras discordâncias na tomada de posse.
Queria participar sem aplaudir, até porque nunca soube bater os cascos desse modo, e sem vaiar, não por respeito ao homem, mas por respeito ao momento e ao país.
Sei que muita gente votou por desejo de segurança, e eu sou sensível a esse desejo. É difícil obter liberdade sem um mínimo de segurança.
Mas depois eu estava ali, no desfile, e havia seguranças no carro, seguranças a pé, um segurança em cima de mim, e pareceu-me que a mensagem que aquilo transmitia a cada brasileiro era que, a partir de agora, sempre que você for passear no seu Rolls-Royce conversível, você estará seguro e ninguém lhe poderá fazer mal.
E foi por isso que tive vontade de rir e escoiceei um pouquinho, doutor juiz.
*Publicado na Folha de S.Paulo