por Fernanda Torres
A ordem e o progresso que Bolsonaro promete restabelecer têm raízes profundas
Fui poupada. Atravessei a noite de 2018 para 2019 a salvo da angústia das retrospectivas do ano e das profecias para a era que se inicia.
Sem internet ou televisão, na sede de uma ex-fazenda de café no Vale do Paraíba, na divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro, me afastei da pressão das festas, perdida no que resta do Brasil colonial.
Impressiona que a pouco mais de duas horas de carro de grandes centros urbanos ainda exista um fundão intocado, que conserva o isolamento vivido por aqueles que se aventuraram a cruzar o Atlântico para “civilizar” esse enorme naco de terra apartado do mundo.
Passada a meia-noite, alguém botou um funk para tocar e as meninas de 13 anos se empoderaram em torno da fogueira, rebolando as carnes com a convicção do “meu corpo, minhas regras”.
Entre os presentes, uma artista plástica carioca, dona de uma tatuagem MADE IN BANGU estampada no extraordinário derrière, foi a única dos de maior capaz de acompanhar as adolescentes no bate-coxa. Os adultos não possuíam nem molejo nem joelho para encarnar a Anitta. É assim que se envelhece.
O cenário arcaico, a noite escura iluminada pelas labaredas e o embalo do batidão reproduziam cenas de “Casa-Grande & Senzala”. O genocídio e a escravidão, a violência e a resistência cultural que formaram o Brasil estarão sempre presentes, mesmo num Réveillon doce, como esse que experimentei.
A viagem no tempo terminou no dia seguinte, debaixo de um pé d’água na estrada de volta. Um alagamento na via expressa, resultou num engarrafamento bíblico na altura da Baixada Fluminense. O Rio é para profissionais.
Um motociclista cruzou com o nosso carro, ostentando uma bandeira do Brasil hasteada na traseira. Foi quando me lembrei da posse.
Depois de três dias longe do noticiário, conectei o celular. No Congresso, o presidente e o vice cantavam o hino de peito inflado e em posição de sentido, com uma convicção patriótica poucas vezes vista.
FHC era sociólogo, poliglota e cidadão do mundo. Ele entoava os versos com a superioridade cívica de um intelectual da Sorbonne. Lula, retirante, operário e líder sindical, cantou tomado por uma emoção macunaímica de quem, contra todas as expectativas, chegara ao poder como representante legítimo do povo.
Messias, não. Messias é um capitão que aprendeu na caserna o sentido guerreiro de se jurar a bandeira.
Pode-se dizer tudo do escolhido, menos que ele não tenha apoio popular. Os peregrinos que foram até Brasília assistir à cerimônia são prova disso.
E ainda teve o carisma insuspeito de Michelle para redobrar a euforia da massa. Com um decote ousado, porte de valquíria e discursando em Libras, ela desponta como a mais nova candidata a Evita do continente Sul.
A ordem e o progresso que Bolsonaro promete reestabelecer no país têm raízes tão profundas na nossa formação quanto as da velha fazenda que me acolheu.
O primeiro decreto do presidente transfere para o Ministério da Agricultura a regularização fundiária das terras indígenas e quilombolas. Messias identifica nesses dois grupos uma ameaça à produtividade da nação e à soberania nacional.
O patriarca eleito, séculos depois da colonização, ainda luta pelas mesmas bandeiras dos senhores de terra do Vale do Paraíba.
Tanto o patriotismo militar quanto a lei do mais forte dos escravagistas; tanto o MADE IN BANGU feminista quanto o requinte futurista do Alvorada de Niemeyer formam esse país híbrido e desigual, manso e selvagem, injusto e esperançoso. Seremos sempre isso, um quase futuro torto, a espera de alguém que o conserte.
*Publicado na Folha de S.Paulo
Falou, falou, falou e não disse nada.
Fernanda Torres se esqueceu de terminar essa confissão de recalque, com a frase: Eita dor de cotovelo do caraio!
Claro que o artigo fosse escrito pelo Frota,falando dos seus arrebatamentos com o Feliciano todos iam elogiar.
Inexiste a palavra concisão no vocabulário da ex-musa Fernandinha.
O que se pode esperar da união da Folha de São Paulo e Fernanda Torres??? Tudo do mesmo que tanto queremos ver longe do Brasil. Brasil que agora está muito bem representado pelo capitão e sua esposa, esta sim empoderada. Os recalcados que me desculpem, ou não, mas estou adorando tudo isso. Quanto mais esbravejam, mais me divirto.