16:22Ossos do ofício

por João Pereira Coutinho

A busca da glória literária é quimera insana e quase sempre condenada ao fracasso

O melhor momento cultural de 2018? Não é um livro, não é um filme, não é um disco. É uma carta de Giacomo Leopardi que o “New York Review of Books” traduziu e condensou. A missiva trata de um fenômeno intemporal —a busca da glória literária—, e Leopardi decidiu partilhar os seus conselhos pela boca de Giuseppe Parini, o grande poeta italiano do século 18.

A escolha é acertada: Parini, para além de poeta, foi um consumado satirista.  O que permite cobrir as suas palavras com um manto de irrisão e ambiguidade que escapou à vetusta publicação americana.

Não que isso interesse: “ridendo castigat mores”, a rir se corrigem os costumes, como diriam os clássicos. E o objetivo de Leopardi, por meio do seu personagem, é frustrar a vaidade dos escritores que se entregam à “loucura da arte” em busca do mais efêmero dos prêmios: a glória.

Mas por que motivo a busca da glória literária é quimera insana e quase sempre
condenada ao fracasso?

Antes de responder à pergunta, Leopardi começa pelo básico: a vida literata é contrária a uma existência saudável. Viver em posição sentada, com a lapiseira colada aos dedos, é uma forma de tortura que escapou a Dante e à sua “Comédia”. Difícil discordar —e o meu ortopedista que o diga.

Mas a coisa ganha proporções dementes quando aliamos essas flagelações do corpo e da mente com o fantasma da ambição mundana. É a receita para o desastre.

Leopardi não perde tempo com os obstáculos mais prosaicos —as rivalidades, as invejas, as calúnias, os preconceitos, as intrigas, as malícias. Se o poeta tivesse conhecido Henry Kissinger, certamente teria concordado com ele: o motivo pelo qual as lutas entre acadêmicos são tão violentas é porque normalmente está muito pouco em jogo. O que vale para a academia, vale ainda mais para a literatura.

Mas Leopardi se concentra  em três contingências que não envelheceram uma ruga.

Para começar, e partindo do pressuposto de que o escritor produz uma grande obra, é importante saber quem a reconhece como tal. Essa proeza é sempre um exclusivo de uma minoria, o que desde logo limita a dimensão da glória.

Por outro lado, se aceitarmos o argumento de que para apreciar um estilo e uma linguagem é preciso ter uma familiaridade nativa com determinada língua, essa minoria é ainda mais minoritária porque o resto do mundo fica imediatamente excluído.

Por último, só quem escreve bem pode julgar competentemente a boa escrita. A minoria, que já era minoritária, tornou-se minúscula.

Como se isso não bastasse, existem outros fatores que influenciam o trabalho dos críticos. Não basta que um livro seja lido por eles; é preciso que seja lido num dia bom porque os julgamentos literários muitas vezes dependem de circunstâncias extraliterárias.

Quando li essa sentença, gelei e ponderei: quantas das minhas críticas não foram já determinadas pelo estado do meu reumatismo? Falar em ossos do ofício, no meu caso, tem um significado especial.

“Last but never least”: mesmo que o livro seja lido, só é possível revelar a grande literatura quando lemos e relemos a mesma obra. Perante a abundância bibliográfica, quem se pode dar ao luxo da repetição?

Faço minhas as palavras de Leopardi. Embora saiba, tal como ele, que os conselhos de nada valem. A escrita é como uma doença incurável que alguns estão condenados a transportar. O que lhes resta?

Escrever, claro. E, em brilhante paradoxo, esperar que desse lado exista alguém, algures,
interessado em aplaudir.

P.S. – Sim, o texto de Leopardi é o melhor do ano. Mas, para não fugir à tradição das listas, são estas as minhas escolhas.

Filme – “Trama Fantasma”, de Paul Thomas Anderson, seguido de “No Coração da Escuridão”, de Paul Schrader (a obra-prima que eu nunca pensei que Schrader fosse capaz de fazer).

Livro – “Last Stories” de William Trevor, esse Tchékhov irlandês, morto há dois anos, que está ao nível do mestre russo. Na não ficção, “National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy”, de Matthew
Goodwin e Roger Eatwell.

Disco – “Both Directions at Once: The Lost Album”, de John Coltrane. Acrescento também as trilhas sonoras de “Trama Fantasma” (Jonny Greenwood) e de “Se a Rua Beale Falasse” (Nicholas Britell).

TV – O documentário “Wild Wild Country”, disponível na Netflix. Na ficção, “Patrick Melrose”, adaptação perfeita do quinteto literário de Edward St Aubyn.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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