21:45AMOR

De Fernando Muniz

Curitiba, primavera de 2018

Aquilo que se faz por amor sempre se faz

além dos limites do bem e do mal.

Friedrich Nietzsche

Ao Antonio, in memoriam, ao Zé Benedito, ao Ismael e à Marcia.

“O quê?! Um apartamento em Copacabana e três mil dólares por mês? Onde se viu uma coisa dessas! A Anette acha que ganhou na loteria?” Ismar balança em sua cadeira de presidente, revolvendo papéis de uma pilha para outra. Não se conforma de, passados tantos anos, ainda não ter conseguido se libertar da ex-mulher.

“Imagine que ela me ameaçou de entrar na Justiça! Inacreditável. Quer pensão, como se tivéssemos acabado de nos separar. Não vejo essa maldita faz trinta anos! Mas sabe-se lá que decisão pode sair de uma corte brasileira. Ainda mais no Rio de Janeiro”.

A filha não sabe se comenta, mas é melhor ser transparente. “Papai… a Anette entrou em contato comigo. Você sabia que eu tenho um meio-irmão, que é médico?”

“Era só o que faltava! Essa cobra rondando a nossa vida…”. Ele solta um suspiro. “Afaste-se dela, minha filha. Ela só quer saber de dinheiro”.

“Fique calmo, papai. Essa raiva toda não te faz bem. Além do mais, ela é a minha mãe biológica”.

“Mas ela nem fala inglês!”

“Comecei a aprender português, papai”. Ismar fica perplexo.

“Pra que aprender uma língua infernal dessas?”

“Oras, papai, ela faz parte de mim”.

“Desde quando? Braços, pernas, cabeça, essas coisas sim, fazem parte da gente. Uma língua as pessoas esquecem. Substituem, deixam pra trás. Vivi quase trinta anos lá e não sei mais falar direito. Esqueço palavras, erro as frases, um saco. E nem estou aí, quer saber? Ela só me serve pra conversar com a sua avó ou seus tios. De resto, passo muito bem sem ela”.

Ismar olha para a parede, coalhada de diplomas e medalhas ao melhor corretor de imóveis do condado de Orange, por décadas. No meio dos quadros, em destaque, uma foto ao lado do presidente Clinton. Deferência a um vencedor. Isso o acalma, dando-lhe um senso de propósito.

Mas fica intrigado com o interesse da filha. Por que uma mulher como ela, bonita, bem-resolvida, dona do seu próprio negócio, casa à beira do mar, precisa se ocupar do passado se o presente tem trazido tantas alegrias? O que mais ela poderia querer? O que a incomoda tanto?

Luísa abre a janela; precisa de ar fresco. O sol californiano começa a se por; o píer da praia de Newport aparece ao fundo, alheio à tensão na sala.

“Você se lembra da Anette, papai?”

“Se eu me lembro dela?” Ismar coça a cabeça. “Passei a vida tentando não pensar nesse tipo de problema”. Ele nota uma expressão aflita no rosto da filha e resolve baixar o tom.

“Venha, pegue um casaco e vamos jantar. Hoje é por minha conta! O meu conversível acabou de voltar da oficina. Depois o seu namorado nos encontra”.

Luísa faz um muxoxo.

“Quem sabe eu me lembro de uma coisa ou outra do tempo em que moramos no Brasil…”.

Os olhos da filha se iluminam.

A Festa é em Copacabana, na altura do Posto 5, com janelas amplas para o mar. Casa de colegas recém-conhecidos do novo emprego. Gente bonita, bossa nova na vitrola, drinques de Cinzano à vontade.

Ismar chega de lambreta. Camisa aberta na altura do segundo botão, calça de linho e mocassins sem meia; sente-se no topo do mundo. Ser tradutor no consulado americano o tirou da Tijuca e sua gente, defensora dos costumes ditos bons, para o Leblon, pleno luz, botequins abertos até o raiar do dia e coalhados de gente com ideias de todo tipo, além das moças do bairro, de saias curtas, queimadas de sol.

Ele não demora em notar Anette entre os convidados, com seu rosto puxando para índia, cabelos escuros e lisos, compridos, embora alta e de maneiras finas. Ismar improvisa um jeito de se aproximar e logo engata em um palavrório sem nexo, mas que a faz sorrir, desconcertada com tantas informações daquele moço bonito e simpático, que parece um ator de cinema. Omar Shariff.

“Deixa ver se eu entendi; você é filha de pernambucana com polonês?”

“É…”

“Pois eu nasci no Maranhão. Quase vizinhos!”

Ela por pouco não aceita uma carona de lambreta; Ismar, apesar de impulsivo, nem imaginou que ela iria cogitar a ideia – onde já se viu uma moça direita andar na garupa de um desconhecido -, mas notou a hesitação da moça. Ótimo sinal.

Combinam de se encontrar dali a dois dias em uma confeitaria ali perto, após o trabalho dele e as aulas do último ano de magistério dela.

Anette aparece sozinha, sem dama-de-companhia nem – o que seria tradicional demais – com a mãe.

“Que boas novas!”

“Mas não se anime não; minha amiga teve um contratempo e é por isso que vim sozinha. Detesto faltar com a minha palavra”.

Evidente que os avanços e modernidades parariam por ali; mais envolvimento só se ele fosse conhecer os seus pais. Mesmo assim Ismar, apesar dos avisos, consegue um afago nas mãos. Sai da confeitaria feliz da vida, andando em nuvens; até esquece que veio de lambreta.

“Sai dessa, rapaz! Tá maluco! Nem beijou a garota e vai ser apresentado aos pais? Que roubada, parceiro!”. Zé Francisco, mais velho, decreta sua sentença dois tons acima do normal. “E mais um chopp aí, ô Manéu!”. O dono do botequim olha atravessado para aquele freguês insolente.

Armando, o caçula, supersticioso, é mais enfático: “Ismar, sei não, alguma coisa me diz que essa garota é problema. Vai lá não, vai lá não!”. Henrique, amigo de escola, tenta salvar Ismar. “Vocês já viram a garota? Sensacional! Coisa de outro mundo! Nem parece que é daqui. Larguem do pé dele! O cara mora sozinho, paga as próprias contas e faz o que der na telha. Vocês estão vendo fantasma onde não existe”.

O apaixonado ouve os irmãos e o amigo com paciência. Deixa o lotação e sua barulheira passar e dá o veredito. “Querem saber? Não custa arriscar. O que os pais delas vão fazer? Arrancar o meu fígado? Besteira. E essa garota vale a pena! Um estouro!”.

O apartamento dos pais de Anette, entre os Postos 3 e 4, a duas quadras da praia, teria tudo para ser confortável. Mas a mistura de carolice nordestina e suas dúzias de santos e padroeiros, em esculturas ou fotografias, com quadros de navios pintados pelo pai, além de uma mobília que aparelharia uns três apartamentos do mesmo tamanho, tornaram o ambiente pesado, quase intragável. Um belo imóvel, que dá claustrofobia.

O Sr. Poliakof, capitão da Marinha Mercante, sujeito corpulento, de pele e cabelos claros, pouco fica no Brasil. E quando em terra, parece perdido no mar.

Seus olhos, azuis cor de água, parecem transpassar o ouvinte. Ao ser apresentado a Ismar, ele o examina feito um legista.

“Muito bonito o seu nome, sabia? Significa ´deus ouve´. Eu tinha um parente com o mesmo nome”. Ismar se constrange; nunca se preocupou em saber. Poliakof aproveita e pega as mãos do pretendente, para analisar.

“É, você não é descendente de preto. E na tua terra tem muito preto. Já estive por lá. Sabe, é só olhar para as meias luas que ficam na parte de cima dos dedos; se elas forem muito largas, tem preto na família”. E sentencia: “Se você tivesse meias luas de preto, eu não deixaria você sair com a minha filha. Jamais”.

Vem à mente de Ismar a imagem de Barbara, sua ama de leite, neta de escravos alforriados pelo seu bisavô, de voz meiga e que sempre nutriu por ele um amor incondicional, de mãe, por toda a vida; do Pinguela, que à noite só se podia distinguir os dentes, seu companheiro de desafios pela baía de São Marcos, em São Luis, valente que só, nadador que se aventurava até perto do matadouro público, onde os cações apareciam atraídos pelo sangue dos bois sacrificados; e de tantos outros, amigos de infância, colegas de futebol, conhecidos de todos os jeitos. Gosta deles mesmo que conte uma piada vez ou outra, assim como conta de português ou de papagaio.

Sente um mal-estar junto àquele marinheiro, que exala pelos poros uma ruindade estranha. Porém se controla e fica quieto. Dona Anfrísia, a mãe, percebe o que se passa na mente do rapaz e aparece com um suco de bacuri, para aliviar a tensão. “Conhece, meu filho? Lá na minha terra apreciamos muito”.

“Eu conheço sim, minha senhora. Lá em casa temos quase toda semana. Papai faz questão de escolher as melhores frutas na feira e prepara o suco ele mesmo”. Fala de modo suave, deixando escapar o sotaque nordestino, que exercita sem o perigo da troça dos amigos cariocas.

A mulher se surpreende com o jeito do rapaz e procura a filha pela sala, com um ar de aprovação. Lança um olhar severo ao marido, que não tem a menor ideia do que possa ter feito de errado.

Anette, na cozinha, também está feliz; pensa naquela mobília, santos e padroeiros e sente um arrepio. Lembra-se da tristeza que sente, quase uma melancolia, durante as longas esperas pelo pai. E sorri ao se lembrar das histórias esdrúxulas e cheias de vida que Ismar lhe conta, de uma São Luís transformada em lugar cheio de fantasmas e outras criaturas da noite, que perambulam em túneis a ligar igrejas a conventos, além da descrição que ele faz de festas populares que nunca ouvira falar antes, para não dizer das suas estripulias com amigos de infância, que pareciam tiradas de livros.

Dá um longo suspiro e volta com a bandeja de suco, para perto do seu salvador.

Os irmãos perdem um companheiro de botequim e os amigos notam que o sotaque do amigo está mais pronunciado. Agora, é a vez de Ismar fazer as devidas apresentações da moça aos pais.

Coisa que nunca havia feito antes.

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