7:42O canto das sereias

por João Pereira Coutinho

Vivemos tempos revolucionários. A culpa é do “populismo”, dizem alguns, essa rebelião das massas que vai destroçando o velho establishment político e cultural, consagrando líderes que falam e atuam em nome do bom povo.

Essa explicação está incompleta e William A. Galston sabe disso. O filósofo norte-americano publicou recentemente um dos mais importantes ensaios sobre o fenômeno —”Anti-Pluralism: The Populist Threat to Liberal Democracy” (Yale, 160 págs.)— e o primeiro mérito da obra é não omitir a história toda.

Comecemos pelo básico: a democracia liberal nunca teve vida fácil. Porque a democracia liberal, ou as virtudes em que ela se assenta, não casa bem com a pulsão dominadora que existe no macaco humano.

A democracia liberal exige sacrifício do nosso egoísmo, compromisso com os nossos adversários e uma lentidão processual —na discussão e na deliberação— que um tempo celerado e acelerado não tolera. O macaco humano quer respostas simples, certezas absolutas e a destruição de quem não pensa como ele.

Mas havia esperanças: depois do colapso do nazismo, do fascismo e do comunismo, três tiranias gêmeas e obviamente antidemocráticas, alguns otimistas acreditavam que a democracia liberal era a única moda que restava.

Não era. Deixemos de lado os inimigos externos —o fanatismo islamita, o autoritarismo oriental, a emergência de um neoczarismo— que são hoje bem reais.

O primeiro desafio interno à democracia liberal veio de cima. Galston fala de “elitismo” e eu aceito o vocábulo. Por elitismo, entenda-se: o desprezo com que elites políticas e culturais passaram a olhar para os eleitores. O povo fede, o povo é boçal, o povo não sabe o que quer e deve ser educado —ou ignorado.

No fundo, o elitismo reproduz, em contexto democrático, uma espécie de despotismo iluminado “après la lettre”: são as elites que governam porque só elas têm acesso privilegiado à Verdade e ao Bem.

Essa arrogância suicidária despertou o seu inimigo populista. O populismo pode ter causas várias que variam de país para país. A imigração irrestrita, a insegurança crescente, a crise econômica, as disrupções próprias da globalização tecnológica, a corrupção endêmica —o cardápio é vasto.

Mas o populismo é uma reação ao fechamento cognitivo das elites, invertendo as premissas do jogo com igual primitivismo: agora, são as elites que fedem e é o povo que detém a verdadeira iluminação.

Basicamente, lendo Galston, entendemos como o elitismo e o populismo são duas falsificações da política democrática que atuam de igual modo.

Primeiro, pela divisão da sociedade em dois blocos homogêneos, antagônicos e irreconciliáveis, uma espécie de “luta de classes” expurgada da canga marxista.

Depois, pela forma como cada uma das “classes” assume uma delirante virtude e um feroz antipluralismo.

Os termos são importantes. Pluralismo, antes de ser um fato normativo, é um fato descritivo: como seres humanos, somos diferentes e desejamos coisas distintas para as nossas vidas.

A posição monista que elitistas e populistas professam, antes de ser um perigo político, é uma negação da natureza humana, defende o autor. Exemplo: quem diaboliza o sentimento religioso de uma parte da população não é muito diferente de quem diaboliza a descrença da outra parte.

Essa negação da diversidade do humano só é possível por um deslocado sentimento de virtude —e de infalibilidade. “Eu sou o Napoleão!”, diz o alienado no seu manicômio. A política de elitistas e populistas é repetir esse adágio por outras palavras —e metade dos eleitores acreditar piamente.

Concordo com Galston: a democracia liberal, para sobreviver, precisa de recusar o canto dessas duas sereias. Mas não, como os companheiros de Ulisses fizeram na viagem para casa, tapando os ouvidos com uma arrogância igualmente letal.

Sim, a vontade popular deve ser escutada e respeitada —mas a democracia necessita de instituições independentes onde o conhecimento e a prudência valem mais do que os caprichos da turba.

Sim, acreditar que é possível suplantar o elemento nacional por um globalismo tecnocrático (e antidemocrático) é uma receita para o desastre. Mas um “nacionalismo decente” (expressão de Galston) não exclui um “internacionalismo decente” (expressão minha). Ou, parafraseando o poeta, nenhuma nação é uma ilha.

Sim, não é tolerável que uma minoria imponha à maioria um código moral uniforme. Mas a proposição inversa é igualmente verdadeira: “viver e deixar viver” é condição primeira de civilidade.

E, sim, se você é um democrata liberal, esteja preparado: o seu destino é nunca ser compreendido por quem prefere habitar um dos extremos do debate.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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