14:49A culpa é do Marechal Hermes

por Pedro Dória

Não é que a história se repita. Sociedades têm culturas, e cultura leva a padrões de pensamento transmitidos de geração em geração. É um pacote de valores, um jeito de reagir com emoção, uma forma de construir raciocínios. Se cultura é como um programa de computador, também ela tem bugs. Isso quer dizer que, perante certos desafios, o software social leva a uma reação. Que se repete. E se repete.

Veja-se o nacional-desenvolvimentismo, por exemplo. Sempre que encaramos um período de onda baixa, alguém olha ali para a estrutura do país e pensa: caso o Estado organize toda a economia duma só vez — de que setores estimular ao preço do dólar —, a gente pega no tranco. Sempre dá em inflação descontrolada e perda de poder aquisitivo. Mas continuamos tentando. Desde JK.

Tem também o seu contrário: a impaciência de alguns liberais com a lentidão do processo democrático. É difícil, mesmo. O Brasil não é por natureza liberal, daí que bate a sofreguidão. Nessa, pinta um autoritário que promete entregar as reformas dos sonhos numa só cacetada, e este grupo de liberais pensa consigo mesmo: “é só um tempinho. Resolve logo”. A primeira coisa que acontece é o liberal ser posto para fora enquanto o autoritário fica. Sempre acontece. Desde Ruy Barbosa.

Antes de ser presidente, o marechal Hermes da Fonseca mandou para a Prússia um grupo de jovens e talentosos oficiais. Queria reformar e modernizar o Exército Nacional. Os rapazes voltaram impressionadíssimos com o movimento dos Jovens Turcos, que prometia reformar a Turquia pela mão militar. Nenhuma instituição é mais disciplinada do que as Forças Armadas, tampouco há outra que de forma mais pura represente o desejo de melhor para a nação. É como pensavam. Disseminaram esta ideia vocacional ao longo da década de 1910, numa revista chamada “A Defesa Nacional”.

Desde então há este padrão de pensamento dentre membros da gente fardada. Vê os políticos civis como parasitas do país e, no fundo, acha que só eles mesmos conseguem dar um jeito. E, ora, na classe média brasileira, por conta duma versão radical do bom e velho sebastianismo — outro de nossos bugs —, sempre que as coisas bagunçam, há quem caia na mesma. E se eles voltassem?

A história não acaba, segue. Ela se repete. E nunca dá certo. Nesta eleição, todos os bugs bateram ao mesmo tempo. Deve ser um recorde.

Falamos muito da necessidade de reformas do Legislativo, do Judiciário. Precisamos começar a falar doutra reforma. A das Forças Armadas. É. Vai ser bem complicado. O problema não é a participação de militares na política. Os EUA tiveram presidentes generais — todos democratas convictos. O que não dá mais para achar normal é alto oficial defendendo ditadura — mesmo que a passada. Ou tortura como método. Não é normal. A herança do marechal precisa ser enterrada.

*Publicado no jornal O Globo

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