21:57Futuro

por Fernando Muniz 

“Você tá fazendo programa?” A menina se assusta com a pergunta da diretora, tão direta. Observa os cartazes na parede da associação, criançada alegre, de todas as cores, brincando de amarelinha. “Tô pensando”.

A diretora pega a ficha da menina, cheia de espaços em branco. Idade? Dez anos, onze no máximo. “Quanto vale cada programa? Você divide isso com alguém?” Nenhuma resposta.

Analisa a ficha; sem pais, nem escola. Mora com parentes. Quem olha por ela? Aperta os lábios, busca uma caneta sobre a escrivaninha e tenta se lembrar de onde largou a xícara de café.

A menina não tira os olhos do chão; unhas dos pés pintadas de vermelho, sandália suja de terra. Ajeita-se na cadeira e dispara: “Tia, você já pensou em ser puta?”.

Apesar do susto a diretora se mantém firme, por trás da folha quase branca. “Puta?!”

“É”.

“Olha que ainda não pensei em ser, mas se fosse, iria pra outro lugar. Subiria a serra. Nunca em Paranaguá.”. Fala sem pensar; nunca imaginou uma coisa dessas.

“Por quê?”

Que armadilha… Lembra-se de um escândalo qualquer, desses que saem na imprensa com frequência. “Ah, em Curitiba, por exemplo, a conversa é outra, cada programa vale milão. No mínimo! Elas andam com gente importante, são sabidas, conseguem conversar coisas complicadas da política”. Ato reflexo busca um espelho, ou algo que reflita imagens, para se reconhecer. Janelas, que deixem a brisa circular? Ficam longe da escrivaninha. A menina arregala os olhos. “Política?!” Palavra nova.

“Mas nem pense que é coisa fácil ser puta lá. Elas passam o dia fazendo ginástica na academia, nada de pinga nem se acabar na noite, falam inglês, leem jornais. As que ganham mais fazem até faculdade”. Pensa nas manchetes dos jornais baratos e suas fotos medonhas, de meninas espancadas, mortas, presas.

“Faculdade pra ser dentista?” A menina se impressiona, agita-se na cadeira, vem à mente a moça que atendeu um primo no posto de saúde. Boa doutora, acabou com a dor de dentes dele.

“Até dentista”.

Uma semana depois ela volta à associação, meio desconfiada.

“E então, gostou da ideia?”

“Gostei!” Seus olhos brilham.

“A primeira coisa que precisamos fazer é te tirar do cais. Senão, em um ou dois anos você acaba no mangue. Comida de peixe, compreende?”.

“Mas e os dérreal que eu ganho?”

A diretora coça a cabeça. Pensa no que os colegas vão falar quando descobrirem, ou no que o seu pai diria. E responde olho no olho: “Venha toda sexta e eu arrumo o dinheiro. Mas tem uma condição”.

“Qual?”

“Você tem que voltar pra escola. E se parar de novo, nada de grana”.

“Nada de Curitiba também?”.

A diretora solta um riso frouxo. “Você aprende rápido, sua danada! De repente, um dia até entra na faculdade”.

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