15:48O barco verde

por Ruy Castro

Internado numa clínica para dependentes químicos em fins dos anos 80, eu recebia bem as palestras dos médicos e terapeutas —todos alcoólatras, como eu— e já me convencera de que precisava ficar longe da garrafa. Mas um dos palestrantes me incomodava. Era um jovem pastor evangélico, que vinha nos falar uma vez por semana. Agnóstico desde criança, eu me entediava com aqueles apelos ao “Poder Superior” que velaria por minha abstinência. E não o poupava —volta e meia, deixava escapar uma gaitada em voz alta a respeito do dito poder.

O pastor tolerou minhas piadas nas duas primeiras sessões. Na terceira, dirigiu-se a mim: “Ruy, imagino que, ao se internar aqui, você esteja a fim de parar de beber, não?”. Admiti que sim. Ele continuou: “Bem, digamos que o seu problema não seja beber, mas que você esteja em alto mar, se afogando. Já desceu duas vezes e, se descer de novo, morrerá afogado. Certo?”. Eu: “Certo”. E ele: “Digamos também que, quando você já estava quase perdendo as forças, surge no mar um barquinho verde e alguém estende a mão para te salvar. E você o rejeita e manda embora porque não gosta de verde. Entendeu?”.

Envergonhado, fiz gulp e disse: “Entendi”. E, num “coup de grâce”, ele concluiu: “Se você está a fim de se salvar, que diferença faz com que seja o Poder Superior ou qualquer outra coisa? Chame-a do que quiser. Mas não recuse o barco apenas por não gostar de verde”.

Essa lembrança veio a propósito de uma entrevista que circula na internet de uma jornalista americana, Janet Glaser, acusando os Alcoólicos Anônimos —cujas teses orientam as melhores clínicas de reabilitação— de se basearem mais na religião do que na ciência. Não é verdade. Mas, e se fosse?

Ninguém mais alheio do que eu às coisas do além —até hoje. Mas devo a um religioso um argumento que um dia me chamou à razão e me explicou tudo —até hoje.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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