20:58Com seu rigor e generosidade, Sérgio de Souza foi um mártir do jornalismo

por José Hamilton Ribeiro

“Tá malz, ô meu!”

Para um repórter da revista “Realidade” —que abrigava os mais bem pagos e, talvez, mais paparicados jornalistas do Brasil nos anos 60—, ouvir essa expressão, com seu estranho plural em z, era sinal de trampo indesejado. No texto apresentado depois de um, dois meses de trabalho, não dava para “mexer” —ele precisava ser reescrito.

“Mas, Sérgio, fazer tudo de novo?” —e não era certo que uma única reconstrução seria suficiente.

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Sérgio de Souza era sereno, falava baixo, com um sorriso de meio lábio, ar quase infantil. Era fácil de amar, mas rigoroso no serviço. “Sua história é boa, não podemos perder no detalhe. Melhor reescrever.”

Sérgio era o editor de texto de “Realidade” e tinha um modo novo de trabalhar a escrita das reportagens. Tendo como arma apenas um lápis nº 1, ele pinçava as palavras para cortar, realçar ou substituir, na busca da clareza, da precisão.

Na imprensa brasileira de então, não se cuidava da palavra. Uma reforma dos jornais do Rio tinha implantado o copidesque, de inspiração americana: um redator reescrevia o original dos repórteres, de forma que o jornal inteiro parecia escrito por um só (e bom) redator. A fórmula influenciou as Redações do país todo, mas, com o tempo, cansou.

Antecessora de “Veja”, “Realidade” foi o maior fenômeno editorial dos anos 60: em poucos meses, atingiu 500 mil exemplares. Atraía sobretudo os jovens. Sua receita vinha de 11 ou 12 grandes reportagens, todas com qualidade literária e cada uma com o jeito próprio de escrever do jornalista.

Era essa a inovação de Sérgio de Souza: ele mexia no texto dos outros, buscando comunicabilidade e emoção, mas sem tirar dele o brilho do autor, o estilo.

Outra força da revista, que Sérgio também vigiava, era a vivência. A ninguém se pedia tratar de um assunto que não tivesse vivenciado, para não incorrer na armadilha —muito perigosa nos jornais e noticiários eletrônicos— de o repórter ter de escrever sobre um tema que não entendia direito.

Curvado sobre a mesa, em silêncio, Sérgio usava os dedos longos e finos, de mãos compridas, para ir assinalando o texto, a lápis. Quando envolvia uma palavra num círculo de grafite, ela estava condenada, precisava achar a palavra certa.

Também não era boa notícia quando riscava uma frase, um parágrafo, um trecho inteiro. Só se via alguma bulha na sala quando quebrava a ponta do lápis: “Alguém pegou o apontador?”.

Aquele trabalho —melhorar o texto para que outros brilhassem enquanto seu nome nem aparecia na reportagem— dava ideia de outra medida de Sérgio de Souza: a generosidade. Gastava o salário antes de terminar o mês, sempre acudindo um ou outro. Sua casa era abrigo para quem estivesse sofrendo de amor, de angústia profissional ou da incompreensão do mundo.

Saiu da editora Abril porque quis, em protesto contra alguma bobagem da empresa em relação à revista. Seus companheiros de chefia —Paulo Patarra e Woyle Guimarães— saíram também. A Redação quase toda foi junto e, nesse dia, “Realidade” começou a morrer.

Sérgio foi depois trabalhar na Globo, na Record, na Tupi, mas não se firmava. O sonho era fazer uma revista de esquerda, de alto nível. Com Narciso Kalili, Hamilton Almeida, Georges Bourdoukan e outros, abriu publicações de resistência à ditadura. Fechavam uma revista, ele abria outra. A última foi “Caros Amigos”, uma ideia de Alberto Dines que, enquanto esteve em sua mão, teve edições primorosas.

Sérgio morreu em 2008, com 73 anos, de pobreza. Estava sem plano de saúde, mas não contara em casa. Quando pediu ajuda, correram atrás de hospital, mas não deu mais tempo.

Outro dia, fazendo uma reportagem para o Globo Rural sobre Raduan Nassar, na fazenda que ele doou para a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), passei por uma estátua. Fui conferir e lá estava: “Sérgio de Souza, jornalista”. Abaixo, uma frase de Nassar: “No mundo real que está aí, Sérgio de Souza era uma ficção”.

Eu me pergunto se a comunidade do campus da UFSCar tem ideia de que aquele é o busto de um mártir do jornalismo brasileiro.

José Hamilton Ribeiro, 82, é repórter especial da TV Globo e autor, entre outros livros, de “Gosto da Guerra” sobre sua experiência no Vietnã, “Pantanal, Amor-Baguá” e “Música Caipira, as 270 Maiores Modas”. Começou seu jornalismo na Folha e foi da equipe inicial de “Realidade”.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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2 ideias sobre “Com seu rigor e generosidade, Sérgio de Souza foi um mártir do jornalismo

  1. Raul Urban

    A lembrança de Sérgio de Souza, aqui deixada por José Hamilton Ribeiro, remete a um passado distante, enq8uanto jornalista que sou. Formado pela Univewrsidade Católica do Paraná em 1970, tive a grata felicidade de viver um profissionalismo diabolicamente romântico, pincelado pelas mãos dos grandes nomes que – como relata nosso ícone, aos 82 anos – souberam nos dar verdadeiras aulas de como contar, escrever. Cercado de montanhas de livros e revistas, aprecio, ao meu lado, no pequeno espaço que, em casa, transformei em escritório, minha honrada (e completa) coleção de “Realidade”. N~]ao só ela, como também a igualmente completíssima coletânea de Quatro Rodas, “cultivada” desde 1960. Calouro ainda na UCP-PR, tive a felicidade de conhecer de perto a pessoa de Sérgio de Souza, em frente a uma da então pesadas mesas de madeirta na velha redação da Abril, na Rua João Adolfo, em São Paulo. Eram tempos outros, lúdicos, quando o então recém-inventado copidesque era, em princípio, o terror de quem ali iniciava uma jornada do escrever – e escrever bem, com primor, guiado por mestres que também deixaram rastros nas velhas redações dos finados Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Última Hora e Correio do Povo, entre outros.
    Num momento em que o computador ea, se muito, a ficção mais distante de quem então fazia do contar e escrever um ofício, o lápis apontado de Sérgio de Souza, circundando o que lhe parecia estranho ao ninho, fazia sentido. Fazia sentido, sim, mas também provocava ondas de calor nos repórteres/redatores (sim, na época fazíamos o papel de ambos), ávidos em verem seus textos publicados na íntegra, mas tantas vezes “alterados” pelos copidesques.
    Ao me ver cercado por o que foi a grande imprensa brasileira – e mantenho sob minha guarda coleções inteiras, ou em part5e, de “O Pasquim”, “O Bondinho”, os sempre lembrados “Cadernos de Jornalismo” então editados pelo JB, nos anos 1970, e tantas outras públicações que marcaram época, recordo minha passagem pelo saudoso “O Estado do Paraná”. Se, de um lado, reinava em nossas cabeças o papel dos grandes mestres nacionais – e então convivi com nomes como Manoel Carlos Karam, Raimundo Caruso (hoje em Florianópolis) e o Mestre Maior, Aroldo Murá, até hoje ativo e exemplar modelo de como nos devemos portar ao falarmos de fatos, recuperemos nomes ocoais que também já nos deixaram e foram importantes: Arnoldo Anater, Jorge Narozniak, Gilberto Grassi, Aramis Millarch, Milton Ivan Heller, Mussa José Assis e outros mais – tão grande é a galeria!
    Retornemos ao exrito por José Hamilton Ribeiro: quando o busto de Sérgio de Souza está presente nos jardins de uma universidade, façamos com que os que ali estudam – e não se trata de uma Faculdade de Jornalismo – observem aquele busto, com a inscrição “Jornalista”, e deem valor às palavras.
    Hoje, aposentado, mergulhado em meu modesto ambiente caseiro de trabalho, tenho em José Hamilton Ribeiro a inspiração que, nos últimos cinco anos, me fez praticamente concluir um imenso trabalho sobre os tropeiros enquanto indutores da abertura das primeiras veredas, cami8nhos e estradas que formaram o Brasil Meridional e ampliaram as fronteiras nacionais. Livro ainda em fase final de redação, à espera de um editor interessado em publicar não só mais um livro de leitura – mas, sim, um documento pretensamente histórico que mostra a evolução expansionista rodoviária nacional ao longo de quase três séculos, feita às custas de heróicos viajores transportando o gado do Viamão a Sorocaba, das Missões Gaúchas às Minas Gerais, ou os que trilharam as areias ligando a Colônia do Sacramento, com passagem em Laguna e Desterro e São Francisco, rumo aos Campos de Curitiba e aos de Guarapuava. Depois da história contando os 20 anos do Calçadão da Rua XV (1992), da História de Paranaguá (1996),da história boêmia de uma Curitiba, de 1850 a 1975 (Curitiba – Lares & Bares -2002); depois de Bares do Paraná (2004), e da volumosa História do Sistema de Transportes de Curitiba (2004), voltei no tempo e retornei aos tempos do escrever poético, com o lançamento, em outubro passado, da coletânea poética “Cabelos Molhados ao Sul de Abril”.
    O documento tropeiro, que aguarda editores interessados, quando pronto e público, é, sem dúvida, um preito aos que me ensinaram o caminhar do escrever, como os acima citados. No fundo, Sérgio de Souza, que morreu pobre mas nos deixou um imenso legado, foi não só um romântico nesse cenário, a exemplo de José Hamilton Ribeiro. Ambos souberam, no trilhar histórico do Jornalismo que nós, mais velhos, queremos conservar como valores únicos, ser tropeiros – abrindo caminhos sempre novos, inéditos, abrindo os olhos dos viajores das novas gerações. Fica a lembrança!

  2. Raul Urban

    Ao comentar, ainda cedo, o texto de José Hamilton Ribeiro sobre Sérgio de
    Souza, e me referir ao documento que ora concluo – o dos tropeiros, enquanto indutores do crescimento da malha viária nacional desde o século XVIII, acrescento o seguinte: enquanto procuro editores interessados neste trabalho (o dos tropeiros), recordo que o tal livro, muito mais fonte de consulta histórica, é um cartapácio com suas 430 páginas. Antecipadamente, os agradecimentos de quem há décadas está envolvido com a memória histórica, mas procura caminhos passíveis de edição de documentações que enriqueçam a História do país. Quaisquer contatos, por intermédio do comum amigo Zé Beto, aqui neste espaço. A leitura diária deste blog, de minha parte, é obrigatória.

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