8:26Dizer a verdade não basta

por Vladimir Safatle

Uma maneira de definir cinismo é descrevê-lo como uma enunciação da verdade desprovida de seus efeitos. Ou seja, em uma fala cínica, dizemos a verdade, mas de tal modo que nenhuma consequência normalmente esperada se siga daí.

Por isso, o cinismo é diferente, por exemplo, da hipocrisia. Nesse caso, não se trata de falar a verdade, mas de escondê-la, de maquiar interesses privados por trás de discursos que falam do bem público.

Da mesma forma, o cinismo não é exatamente a mesma coisa que a ironia. Pois um discurso irônico tem normalmente uma dimensão crítica capaz anular a força da proposição ironizada, produzindo modificações nas estruturas do engajamento.

Não é difícil perceber como a política brasileira se organiza atualmente a partir de uma dinâmica cínica explícita. Por exemplo —e este está longe de ser o único caso—, há dias o sr. Bolsonaro apareceu em entrevistas demonstrando sua inépcia absoluta em questões econômicas. Todas as vezes em que era inquirido a respeito, ele soberanamente afirmava ter economistas que saberão agir por ele.

O que há de interessante aqui é a maneira com que ele expôs uma verdade estrutural. Imaginar que a política define a economia, que o presidente de fato comande seu ministro da economia é apenas uma dessas farsas que a democracia parlamentar continua a nos repetir.

No fundo, todos sabemos que as verdadeiras decisões econômicas são impostas à classe política, e não fruto de decisões tomadas por ela. Que o mesmo Henrique Meirelles, o homem do patrimônio pessoal de R$ 377 milhões, tenha sido presidente do Banco Central no governo Lula e presidente de fato no desgoverno Temer é algo que deveria nos dizer muito a respeito do que a “política” realmente se tornou.

Nesse sentido, o que o sr. Bolsonaro fez foi apenas revelar uma verdade. Algo como: “OK, por que vocês estão me perguntando isso? Todos nós sabemos que o presidente não governa, que independentemente do candidato escolhido a agenda econômica já está imposta e decidida. Então que tal falarmos do que o presidente realmente decide, como caçar comunistas imaginários em escolas, louvar torturadores e defender os valores sacrossantos da família?”.

É claro que uma posição que não fosse cínica partiria dessa constatação do esvaziamento da política para fazer a crítica radical de um modelo que diz aos indivíduos serem todas as escolhas possíveis enquanto mostra que, nas questões econômicas que definem nossas vidas, não há escolha possível.

Faça chuva ou faça sol, de três em três meses, abriremos os jornais e leremos notícias a respeito dos lucros líquidos recordes do sistema financeiro nacional —o que mostra claramente quem governa enquanto você obedece, quem ganha enquanto você perde, o que já foi decidido enquanto brincamos de eleições.

Uma verdadeira política traria as decisões econômicas para a esfera pública, permitindo que a população decidisse diretamente a respeito de orçamentos, engajamentos de longo termo do Estado e pagamentos de dívidas da União em situações de crise.

Mas o último capítulo dessa escalada cínica foi dado nessas últimas semanas. Não é mais segredo para ninguém que a educação nacional entrou em colapso. Órgãos de pesquisa como o Capes e o CNPq indicaram que o orçamento atual impede o financiamento de pesquisas no sistema de pós-graduação nacional.

Todo sistema de bolsas de pesquisa corre o risco de ser cortado, com consequências catastróficas para a produção nacional de ciência e tecnologia. Dias atrás, a Presidência vetou gastos extras para o cumprimento do Plano Nacional de Educação.

O problema está longe de existir por falta de recursos. Ele diz respeito à definição de prioridades. No entanto, a última coisa que está presente na “agenda eleitoral” é a discussão sobre educação. No máximo, vemos propostas delirantes —como permitir educação à distância já no ensino fundamental— ou completamente ineficazes e injustas, como levar universidades públicas a cobrarem cursos de pós-graduação de seus alunos.

Ou seja, trata-se de mostrar claramente que não há ninguém preocupado com tais pautas, já que a verdadeira agenda é o desmonte final do sistema público de educação. Pelo menos, não temos mais de ouvir a classe política fazendo a defesa incondicional da importância da educação enquanto a destrói por completo.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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