14:51Terceiro ato

de José Maria Correia

Bem, inapelavelmente cheguei aos 70 anos.
Ao terceiro ato do teatro de minha vida.
Confesso que não esperava tanto.
Venho das antigas gerações onde não se ia tão longe.
E da contestação, da contracultura e das passeatas estudantis.
Dos anos dourados.
Dos hippies de Woodstock e das flores nos cabelos longos.
Do amor, não tão livre.
Dos protestos, das canções de Dylan e dos sonhos que ainda por mim são sonhados.
Este tem sido meu destino, minha sorte.
Meu sortilégio.
Viver uma vida de aventuras.
De superações e de enfrentamentos.
E os anos assim se transformaram  em símbolos de vivências .
Sim, há  também um sentimento de crepúsculos que chega nesta fase.
Mas não um desespero ou uma angústia, pois inexoravelmente haverá sempre um amanhecer de luzes sucedendo as sombras da noite.
E se já não me ouvem meus tantos mortos envoltos na noite eterna.
E da falta que me fazem .
Que faço se não encontrá-los em minhas memórias de outros tempos.
De infância e de folguedos despreocupados.
Das longas viagens de moto.
E as longas noites estreladas de romances nas areias da praia deserta. 
E assim agora sigo.
Surpreendido ao ver com estranheza o que passou, no espelho há esse senhor tranquilo que encontro todas as manhãs e penso ser meu pai.
Mas pelos olhos me reconheço pois ainda é possível decifrar nas pupila os mistérios das paixões secretas e das entregas nas alcovas do passado, de nudez e de delírios e de tantos enganos e desenganos que valeram tanto a pena.
Assim é que se chega aos setenta.
Já sem tantas expectativas, mas ainda 
Cercado da luminosidade desabrida do amor da antiga companheira, das filhas e dos filhos das filhas.
Com certa conformidade.
Mas protegido pelo afeto e perto e distante do grande silêncio que me aguarda – e do grande reencontro para onde todos rumamos.
Mas não nos importamos nem me importo pois estou envolto ainda em amor, em magia e encantamento.
E por onde andei e ando sou acompanhado de esperança.
Pleno de vida e de tantas faces e espíritos que me habitam .
Desde sempre e como nunca, mesmo diante de inevitáveis perdas, de encontros e desencontros .
Me fascino diante do mundo e da vida.
Sou capaz de me redescobrir.
De viver bem com meu destino.
E estar feliz .
Aos setenta .

Compartilhe

2 ideias sobre “Terceiro ato

  1. ruth bolognese

    Meu Caro Zé,
    Belíssimo texto. E absolutamente adequado a essa estrada que partilhamos todos juntos, numa quadra isolada do tempo: os que estão nos sessenta, nos setenta, nos oitenta. Grande abraço, ruth

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.