14:21Aldir Blanc, sempre!

por Marluci Martins, no jornal O Globo

“Se estoura um tiroteio, vou para o banheiro chorar”

O diabetes provoca cãibra, deixa o pé “revirado pra baixo ou pra cima, com os dedos bem separados em posições exóticas, mistura de sapo, pato, alienígena”. Os sintomas cabem num primeiro educado e doloroso e-mail por meio do qual a entrevista é recusada. Não é só o diabetes. A música dá sede. E a violência é a nascente das lágrimas do bisavô, a cada estampido que desemboca naquele pedacinho da Tijuca, a Muda.

Aldir Blanc mudou. Aos 71 anos, já não bebe e, não bastasse a seca, ainda carrega a dor da saudade do melhor companheiro de copo e corpo presente, o pai Alceu, funcionário aposentado da Previdência Social, morto em 2015, com quem seguem vivas as resenhas imaginárias emersas da criatividade do compositor e escritor, médico por formação.

“Podemos fazer por e-mail, com foto de arquivo”, pondera Aldir, lá do seu teclado tijucano — proposta razoável, levando-se em conta a conhecida resistência a recepções e saídas. Com réplicas e tréplicas incluídas na negociação, seguiu-se enfim a entrevista digital, sem papas na língua ou nos dedos que teclam raivosos na ferida. “O momento atual do Brasil é merda pura”, sentencia o compositor de “O bêbado e a equilibrista”, com a angústia no peito remoendo feito cãibra.

Aldir Blanc não mudou. E garante continuar produzindo, agora também com novos parceiros.

RECLUSO

“Não alimento mais de jeito nenhum esse treco de ‘Ermitão da Muda’ etc. Tem muito folclore e até um pouco de maldade nisso. Eu saio de casa sempre que tenho vontade, o que é raro. Trata-se de uma opção minha. Gosto de ficar em casa, talvez pela vida que tive como médico e, depois, viajando pelo Brasil, apavorado com os aviões. Adoro ficar lendo em casa, e ninguém tem nada a ver com isso. Vivo a vida que escolhi. E aproveito para citar Noel Rosa: ‘Às pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto…’ Defeco solenemente para a tal ‘visibilidade’ tão falada e que gera oportunismos hediondos. Não preciso disso.”

ROTINA

“Minha rotina é ler, ler, ler e escrever diariamente. Leio quase o dia e a noite inteiros. Então, durmo pouco, umas quatro horas pela manhã. Me dá muito prazer, além de ser uma atividade da minha vida profissional. Nada me deixa mais feliz que livros e leitura, a não ser as filhas, as netas e os netos — são cinco netos: três moças, dois rapazes. Fui avô de quatro deles antes dos 50 anos e tenho um bisneto de 4 anos. Espero ainda ter muitos outros. Quero destacar também a importância de convivência de 30 anos, feitos em março de 2018, com minha Suburbana (Mary Sá Freire). Sem ela não existo. É meu primeiro, único e último amor.”

SAÚDE

“O importante no diabetes, desde junho de 2010, foi a decisão de parar de beber, a não ser em raras ocasiões, como no dia da morte de meu pai. De lá pra cá, bebi quatro ou cinco vezes. E pouco.”

MORTE DO PAI

“Não superei. Carrego ele comigo. Sonho muito com ele, sempre bem, bebendo com os amigos no Bar do Momo. Sinto muita saudade. Aí, “converso” com ele, um hábito que tenho. Essas conversas malucas podem ser com a avó que me criou, com parceiros e amigos que já se foram — como Paulo Emílio, Maurício Tapajós, Luiz Carlos da Vila, Henfil e Betinho —, mas também ocorrem com pessoas que mal conheço ou conheci, como Jô Soares, Ivan Lessa, etc.”

MÚSICA

“A música me emociona. Chega a transtornar. Ouço com cuidado, pois dá vontade de beber. Ouço as dicas maravilhosas que o Arthur Dapieve dá, Debussy, Bach, muito jazz e música brasileira, claro.”

JOJO TODYNHO E ANITTA

“Não conheço nada de pop novo.”

MACHISMO?

“Músicas como ‘Gol Anulado’ (‘Quando você gritou mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar’) refletem a época em que foram feitas, não expressam o comportamento pessoal do autor. Acho que as mulheres estão mandando bonito, e o futuro depende mais delas do que dos homens.”

RACISMO

“A questão racial é gravíssima. Basta ver como o país mata seus jovens negros e pardos. Um absurdo. E isso acontece por racismo, sim, dentro de um quadro mais complexo de desigualdade racial.”

VIOLÊNCIA

“O futuro dos meus netos me preocupa muito. Às vezes eles estão aqui, estoura um tiroteio, e vou pro banheiro chorar. É de enlouquecer.”

BRASIL

“O momento do Brasil é merda pura: o ‘pibinho’ de 1,5% vai cair pra zero, a monstruosa e disfarçada quantidade de desempregados, a selva em nossas cidades, um sinistro da inçeguran$ia paspalhão, as mentiras sobre a ‘recuperação da economia’… Temereca é corrupto, sujo, mentiroso, crápula. Os tribunais são sacos de gatos, e aquelas duas casas de tolerância do Plabaixo, pobre povo brasileiro nas mãos de bandos organizados de criminosos impunes.”

MÚSICAS SEM PRAZO DE VALIDADE

“As músicas estão aí, e falam por si. Tenho orgulho delas. ‘Ronco da Cuíca’, ‘Plataforma’, ‘O Bêbado e a equilibrista’, todas no alvo e atuais. Tenho vários sambas com o Moacyr (Luz) que parece que fizemos ontem.”

TRABALHO

“Claro que estou compondo. Ou morro. Tenho músicas inéditas com Josimar, Moyseis Marques… Aliás, Dorina arrasa em ‘Pretinho Básico’. Há novos parceiros chegando, como Ruy Quaresma e João Callado. Duas grandes cantoras fizeram CDs só de letras minhas: a portuguesa Maria João e a Dorina. Mariana Baltar está terminando um CD também só com músicas de diferentes parceiros, com todas as letras minhas.”

FUTEBOL

“Nota zero para Marcelo, Fernandinho, Paulinho, Gabriel Jesus e Neymar. Na derrota para a Bélgica, quem salvaria aquela jogada do Lukaku que terminou em gol do De Bruyne era o Arthur, que nem foi convocado. Nota 0,5 para o goleiro-gato e para o Fagner. Mas a culpa é do Tite que, se continuar, precisa se ater mais a futebol e bem menos a platitudes parecidas com besteirol de autoajuda.”

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