6:32A fragilidade da democracia

por Célio Heitor Guimarães

O jornalista Clovis Rossi desistiu de esperar pela civilização do Brasil. Não mais acredita que chegaremos a ela, pelo menos no período em que lhe resta de vida. E toma como exemplo o movimento dos caminhoneiros que paralisou o Brasil, escancarou a falta de governo e de autoridade no país, o egoísmo quase criminoso de uma categoria profissional e a ausência de civismo e fraternidade.

No entanto, para ele, o fracasso neste triste episódio não é apenas da autoridade pública, mas de toda a superestrutura institucional do país. E conclui que “o fracasso é de um coletivo chamado Brasil”.

De fato, como é possível (e aceitável) que uma minoria, ainda que com reivindicações plausíveis, bloqueie estradas, interrompa a vida nacional, desabasteça a população de combustível, gêneros de primeira necessidade e medicamentos e negue-lhe o inalienável direito de ir e vir, trabalhar e produzir, causando danos de incalculável monta a toda a nação? Sobretudo quando se descobre que, por trás dos razoáveis pleitos dos manifestantes, marcam presença grandes companhias transportadoras e a gentalha político-partidária.

O Executivo demorou para agir e o Legislativo omitiu-se, mas boa parte da população deu apoio aos grevistas e aplaudiu a insana manifestação, sem atinar as consequências. Houve, até, quem pedisse a intervenção dos militares, esquecendo-se de que a última durou 21 anos, não solucionou os problemas do Brasil e ainda criou uma série de outros, alguns presentes até hoje, afetando a vida nacional. São desatinados, mal informados, que não sabem o que é viver sem liberdade.

Na mesma terça-feira, este blog publicou comentário assinado por Nelson Martins, que se diz entristecido ao observar que “a grande maioria dos brasileiros está tão acostumada com os privilégios de um ou de outro que já acha tudo muito natural”. No entanto, faz ver que “esperar que um movimento que apresentou uma pauta exclusivamente voltada para as suas necessidades possa trazer benefícios para toda a população já é demais”, pois revela apenas “um intenso grau de ingenuidade ou de despreparo”.

É possível que Clóvis Rossi e Nelson Martins tenham razão, que o Brasil esteja se distanciando da civilização e que os privilegiados se multipliquem graças à indulgência da plateia resignada. É parte da democracia. Ou seja, é aí que se revela toda a delicadeza e a fragilidade da democracia, que para que se realize é preciso que o povo saiba pensar e agir.

Para Rubem Alves, a democracia “é uma obra de arte coletiva”. Que começa com as ideias e a ação do povo. Se as pessoas não souberem pensar e/ou agirem de forma incorreta, a democracia não será exercida.

No caso do bloqueio das estradas e da interrupção do abastecimento da coletividade, por certo houve exagero dos manifestantes. Não apenas exagero como falta de bom senso e profunda ingenuidade. Podiam até ter objetivos sinceros e receptíveis, no primeiro momento. Mas, achando-se espertos e poderosos, baixaram a guarda e se tornaram massa de manobra e permitiram a infiltração no movimento de oportunistas mal-intencionados, a soldo ou não de facções políticas. Resultado: perderam o apoio popular e passaram, eles próprios, a ser reféns de malfeitores de carteirinha, autênticos salteadores de estradas, que assumiram o terreno.

E aí voltamos ao mestre Rubem Alves, que parece cada vez mais presente na vida nacional: “Para o exercício da democracia, é necessário que o povo pense. Se o povo não souber pensar, votos e ações não a produzirão. A presença de ratos na vida pública brasileira é evidência de que o nosso povo não soube pensar, não sabe identificar os ratos… E não sabendo identificá-los, ele próprio, o povo, inocentemente abre os buracos pelos quais os ratos entrarão”.

Ainda sobre o tema, outra lição de Rubem: “Uma sociedade democrática entre lobos é possível, porque existe equilíbrio de poder entre os lobos. Uma sociedade democrática entre cordeiros é possível, porque existe equilíbrio de poder entre os cordeiros. Mas não é possível uma sociedade democrática onde haja lobos e cordeiros. Os lobos sempre devorarão os cordeiros…”.

Que o digam os caminhoneiros do Brasil.

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