6:22Olhares mortos e gelados

Por Ivan Schmidt 

Inacreditáveis 23 anos transcorreram até a leitura do romance em tom memorialístico – A escrita ou a vida – do autor espanhol Jorge Semprun (1923-2011) publicado pela parisiense Gallimard em 1994, e no ano seguinte no Brasil pela insuperável Companhia das Letras, com a brilhante tradução de Rosa Freire D’Aguiar.

O que sei ao certo é que não adquiri o livro no ano do lançamento, mas que o mesmo permaneceu por longo tempo num desvão qualquer do que já chamei de caos organizado (minha tentativa de possuir uma biblioteca), até que há pouco mais de uma quinzena, se tanto, peguei-o aleatoriamente em meio a um monte de outros volumes, com a intenção de lê-lo.

Desde as primeiras linhas passei a lamentar o fato de ter postergado a escolha deste que é um dos mais impressionantes relatos da vida e morte de milhões de seres humanos recolhidos ao sistema nazista de campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial.

Semprun, filho de uma família da classe alta — seu pai foi ministro de Estado e diplomata — desde a juventude ingressou no Partido Comunista Espanhol (PCE) e depois de anos de militância exerceu funções de direção no partido, chegando a ter alguma convivência com Santiago Carrillo e Dolores Ibarruri, a Passionária, principais lideranças do comunismo na Espanha.

Anos mais tarde foi expulso do partido pelas posições de independência ideológica e espírito reformista que logo entraram em confronto com o pensamento fossilizado dos dinossauros que dirigiam o partido. Sua recompensa moral foi o convite feito por Felipe Gonzalez para integrar seu governo na função de ministro da Cultura, entre 1988 a 1991.

Desde muito jovem exilado em Paris, Semprun estudou filosofia na Sorbonne, ao mesmo tempo em que atuou na militância clandestina do comunismo até ser preso pela Gestapo em 1943. Deportado para o campo de concentração de Buckenwald, lá ficou até 1945 quando os prisioneiros ainda vivos foram libertados pela tropa comandada pelo general Patton, um dos heróis norte-americanos da Segunda Guerra.

A permanência do jovem espanhol no campo se prolongou por dois anos, premida diuturnamente pela fome, trabalhos forçados, espancamentos, frio brutal e toda sorte de condições sub-humanas impostas aos prisioneiros.

A libertação veio no dia 14 de abril de 1945, “mas não havia sobreviventes naquele barracão do Pequeno Campo de Buckenwald” escreveu Semprun cerca de 50 anos depois de ter testemunhado a temporada no inferno: “Só havia olhares mortos, arregalados para o horror do mundo. Os cadáveres, contorcidos como figuras de El Greco, pareciam ter reunido suas últimas forças para rastejar pelas tábuas do estrado até o mais perto possível do corredor central do barracão, por onde poderia surgir um derradeiro socorro”.

Está plenamente justificado o grande hiato que Jorge Semprun sublimou sob a tortura diária de curtir lembranças compartilhadas pelo também deportado, o judeu-italiano Primo Levi, que não só “viveu o invivível, mas domina os instrumentos intelectuais que lhe permitem transmitir essa vivência”, até ser tocado por uma força interior que o impulsionou a relatar a tragédia vivida por milhões.

Uma frase tornou-se emblemática da enorme força de vontade exercida por Semprun ao escrever sobre a abominação das ideias e práticas do Terceiro Reich, encimadas pelas tremulantes bandeiras da cruz suástica: “Tornei-me um outro para poder permanecer eu mesmo”.

O autor de Autobiografia de Federico Sanchez, codinome adotado nos anos da clandestinidade comunista percebeu que “olhares mortos, gelados pela angústia da espera, certamente espreitaram até o fim alguma chegada súbita e salvadora. O desespero que neles se lia era proporcional a essa espera, a essa derradeira violência da esperança”.

Três dias depois da chegada dos primeiros soldados de Patton a Buckenwald, o crematório já não funcionava e a administração militar norte-americana tratava de restabelecer os serviços essenciais “a fim de alimentar, medicar, vestir, reunir as poucas dezenas de milhares de sobreviventes, ninguém pensou em pôr novamente o crematório para funcionar. Era impensável, na verdade. A fumaça do crematório tinha de desaparecer para sempre: impensável que ainda a víssemos pairando sobre a paisagem”.

Semprun não esqueceu as latrinas que nos dias de trabalho só eram procuradas pelos inválidos ou doentes dos blocos de quarentena dispensados do trabalho: “Mas, desde a noitinha, desde que terminava a chamada da tarde e até o toque de recolher, as latrinas passavam a ser, além de cloacas, o que era sua destinação primitiva, feira de ilusões e esperanças, mercado onde trocar os objetos mais esquisitos por uma fatia de pão preto, umas guimbas de machorka, ágora, enfim, onde trocar palavras, moedas insignificantes de um discurso de fraternidade, de resistência”.

Ao lado da recordação da brutalidade dos horrores vivenciados no campo, o jovem amante da literatura e da filosofia, foi recolhendo retalhos de uma vocação para as letras, que mais tarde o levaria a fruir notável celebridade. Um exemplo paradoxal, ou seja, o interesse pelo mundo real que o tornou sensível às ideias de Husserl e Heidegger descobertas em Levinas foi descrito pelo autor: “Assim, eu desconhecia que Husserl tinha sido expulso da Universidade alemã por ser judeu. Desconhecia também que Sein und Zeit, nas edições anteriores à ascensão do nazismo ao poder, fora dedicado a Husserl e que essa dedicatória desapareceu tão logo o velho mestre de Heidegger caiu em desgraça, vítima da purificação étnica da Universidade alemã”.

O exemplar da obra do reitor da Universidade de Fraiburgo, comprado por Semprun numa livraria do bulevar Saint-Michel, em Paris, não mais estampava a dedicatória, fato que na ocasião não o surpreendeu ou sequer indignou, já que ignorava que o nome do grande mestre ali deveria estar. Contudo, ao escrever A escrita ou a vida não se isentou de conceber um comentário ferino: “Não sabia que Heidegger o apagara deliberadamente, como se apaga alguma coisa da memória: uma lembrança desagradável. Como se apaga um nome numa sepultura, talvez”.

Aliás, essa foi a interrogação jamais apagada da memória do pensador espanhol, assim como de muitos outros mundo afora, que também se embasbacaram diante do enigma representado pela simpatia de Heidegger pelo nazismo, reconhecido como filósofo de pensamento profundamente refinado e sério. Muitos anos depois da amarga experiência em Buckenwald, Semprun foi convidado por um jornalista da televisão alemã, que pretendia produzir extensa reportagem sobre o assunto com base no depoimento do sobrevivente.

Durante os intervalos das gravações, Semprun narra ter aberto por acaso o livro do poeta romeno Paul Celan, gesto que o fez lembrar a conversa deste com Heiddeger, na cabana-refúgio do filósofo na Floresta Negra. Na verdade, estava se referindo ao poema Todtnauberg, seu preferido, que definiu como “o único vestígio que nos resta, ao que eu saiba da conversa”.

“Paul Celan, conforme se recorda, queria obter de Martin Heidegger uma formulação clara sobre sua atitude perante o nazismo. E mais exatamente sobre o extermínio do povo judeu nos campos hitleristas. Não obteve, conforme também provavelmente se recorda. Obteve apenas esse silêncio que alguns tentam esquecer, ou ocupar com conversas superficiais: o silêncio definitivo de Heidegger sobre a culpabilidade alemã. Silêncio que certas cartas de Karl Jaspers evocam com um rigor filosófico devastador, apesar da cortesia de suas palavras”, escreveu.

Nenhuma palavra veio romper aquele silêncio e “Paul Celan atirou-se no Sena, algum tempo depois: nenhuma palavra do coração o segurou”.

 

 

 

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