10:15Meu filho, você não sabe de nada

por Marcelo Coelho

No auge do confronto, o pai pergunta ao filho: “Você pensa que é melhor do que eu?” No filme “1945”, em cartaz em São Paulo, vem à tona o comportamento que tiveram os habitantes de uma aldeia na Hungria, durante a ocupação nazista.

Muita gente, vamos percebendo, tirou proveito do extermínio dos judeus para enriquecer. Descrevo a situação sem muitos detalhes, porque tudo se constrói aos poucos nessa história, ao mesmo tempo austera e tensa, dirigida por Ferenc Török.

Enquanto a aldeia se prepara para o casamento do rapaz rico da cidade, dois judeus desembarcam na estação, trazendo baús carregados, diz-se, de perfumes e cosméticos. Medo e culpa se espalham: será que os dois forasteiros vieram recuperar os bens que usurpamos de seus parentes?

Ninguém está disposto, naturalmente, a devolver coisa nenhuma. O filho descobre a desonestidade do pai. Este se defende como pode. “Como pensa que você se livrou de ser convocado para a guerra?”

Foi com dinheiro roubado, afinal, que o pai corrompeu os oficiais que certamente colocariam o rapaz na linha de frente do pelotão.

Entre mãe e filha, o conflito é praticamente idêntico —agora numa peça, também em cartaz na cidade. Trata-se de “A Profissão da Senhora Warren”, de George Bernard Shaw (1856-1950), com direção de Marco Antonio Pâmio (no auditório do Masp, até 1º/7).

Vivie (Karen Coelho) acaba de ganhar um prêmio de matemática em Cambridge. Tem um excelente futuro profissional numa época em que só se esperava, das mocinhas bem-nascidas, que casassem com alguém de sua condição.

Logo no começo desse drama (escrito em 1893), vemos que Vivie não é tão bem-nascida assim. A jovem sabia muito pouco a respeito de sua mãe, a senhora Warren (Clara Carvalho), cuja profissão nada tinha de recomendável.

O segredo se revela. Vivie fica indignada. A mãe lhe pergunta: e como você pensa que eu pude pagar pelos seus estudos? Gostaria de ter tido o mesmo destino que todas as mulheres do lugar de onde venho?

A honestidade significaria matar-se de trabalhar numa fábrica vitoriana, ou casar-se com um imbecil alcoólatra, envelhecer aos 30 anos e morrer depois de pôr dez filhos no mundo. Que moral tem a brilhante estudante de matemática para julgar a mãe?

Nos dias de hoje, é como se a sra. Warren tirasse seus vencimentos de uma rede de escravidão infantil ou de pedofilia. Seria necessário imaginar algo do gênero para reproduzir, na plateia de hoje, o impacto que Bernard Shaw terá produzido em fins do século 19.

“A Profissão da Senhora Warren” foi proibida na Inglaterra depois de duas apresentações. As indignações morais contemporâneas voltam-se para coisas diferentes do que aquelas vigentes no tempo de Shaw, mas o problema não se altera.

Imagine-se o filho intelectual de um grande empreiteiro, a filha ambientalista de um ministro do PT. Aprenderam na universidade pública os elementos básicos do pensamento crítico —e, possivelmente com os próprios pais, padrões claros de decência pessoal.

Fiz tudo para que você tivesse uma boa educação, diz a senhora Warren à filha. “Mas”, completa, “vejo que te ensinaram tudo errado!” Na análise marxista, a surpresa da senhora Warren teve seu equivalente político em 1848.

Até aquele momento, os princípios da igualdade, da liberdade e da fraternidade podiam ser tomados mais ou menos ao pé da letra.

Encontraram seus limites quando operários passaram a reivindicar educação gratuita, direito a voto, organização sindical e criação de oficinas que pudessem gerir por conta própria. Tinham aprendido bem demais os hinos em favor dos direitos e da dignidade humana.

Não me parece casual que, com o declínio ético do socialismo (depois de Stálin e da invasão da Hungria em 1956), sem contar com a diminuição da própria porcentagem do operariado no conjunto da população, o conflito moral tenha mudado de protagonistas.

Em 1968, jovens com ideais corretos (e pouca ideia de como implantá-los) se chocaram contra o discurso dos mais velhos —que não se sustenta com muita firmeza. É o discurso do “não é bem assim”, do “você não sabe de nada”, do “quem é você para me criticar”?

Sem moral, a autoridade se mantém a duras penas. Uma conquista parece clara depois de maio de 1968: os mais velhos perderam boa parte do seu poder. Não podiam dar lições de moral; passaram, como se sabe, a dar aulas de economia.

Até que deu certo: muitos jovens, hoje, não querem outra coisa.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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