5:40A última missa

Por Ivan Schmidt 

Para quem não foi surpresa a mãe ter nascido analfabeta ou se definir como metamorfose ambulante e a alma mais pura em toda a história desse país, além de volta e meia se comparar a Getúlio Vargas, é fichinha a última autodefinição destampada no discurso feito no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, lócus de sua projeção para a política ao fundar, mais tarde, o Partido dos Trabalhadores.

A transcrição da verborragia pode não ser literal, conquanto seja absolutamente fiel aos objetivos com que foi proclamada: “De agora em diante não sou mais um ser humano, mas uma ideia”.

O sociólogo José de Souza Martins na “Coluna Social” do suplemento Eu&Fim de Semana do Valor Econômico (13.4), ao comentar a encenação do último dia 7, definiu os acontecimentos que marcaram a retirada de Lula “como um rito sacrifical” em que o próprio acabou “se desvelando como personificação e reavivamento do sebastianismo brasileiro. Getúlio despediu-se dizendo ‘Saio da vida para entrar na história’. Lula anunciou sua própria ressurreição nas novas gerações: na prisão já não será Lula, será uma ideia. Deu uma dimensão mística à sua despedida”.

Com raciocínio abrangente Martins opinou que “a forma religiosa do evento no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, foi a sagração política do subúrbio. O território da margem da sociedade do PT, que as alianças erradas e a contaminação com o poderio do centro afastaram do destino dos simples, que continuam à espera do retorno do rei encoberto, dom Sebastião”.

O cientista político Bolívar Lamounier, no mesmo dia, mas em outro veículo (Folha de S. Paulo), em entrevista ao repórter Marco Rodrigo Almeida considerou a prisão de Lula uma “decorrência natural de uma série de graves irregularidades constatadas nos governos petistas” e, por isso, “falar de perseguição da Justiça não passa de uma ilusão”.

Mesmo sob a suspeição de estar ligado ao PSDB, Bolívar não briga com a realidade ao sugerir que “muita gente se recusa a reconhecer que houve corrupção em larga escala” nos mandatos de Lula e Dilma, comentando que toda a celeuma em torno da condenação subordina-se a um fator muito forte, que é a popularidade do agora presidiário.

O caso Lula, diz ele, serviu para reforçar uma tendência do PT que é “abraçar as piores causas que se possa imaginar”, sustentando agora o contraditório sobre a condenação em segunda instância. Para Bolívar “só prender o condenado após o fim do processo é uma jabuticaba brasileira, uma jabuticaba podre”, embora para “defender esse absurdo e proteger Lula, o PT se agarrou ao Gilmar Mendes e ao Marco Aurélio, duas das figuras mais discutíveis do STF, para ser ameno”.

A prisão de Lula foi também tema de pensadores de primeiro time como o escritor Mario Vargas Llosa, um dos ganhadores do Premio Nobel de Literatura. No artigo do El País de Madri (14.4), distribuído para periódicos ao redor do mundo, escreveu que a entrada do ex-presidente Lula na prisão ensejou grandes protestos organizados pelo PT “e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela e Nicarágua, o que era previsível”.

Vargas Llosa não esconde a preocupação do ex-presidente em combater a pobreza e o feito extraordinário de “tirar, ao que parece aproximadamente 30 milhões de brasileiros da miséria quando esteve no poder”.

Todavia, ponderou com razão que os apologistas de Lula “estão convencidos, pelo visto, de que ser um bom governante tem a ver somente com realizar políticas sociais avançadas, e que isso o exonera de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi preso pelas boas coisas que fez durante seu governo, mas pelas ruins, e entre essas se encontra, por exemplo, a gigantesca corrupção da empresa estatal Petrobras e suas empreiteiras, que custou à sofrida população brasileira nada menos de dez bilhões de reais (desses, sete bilhões em propinas)”.

O escritor oportunamente citou “o feio papel de leva e traz que ele (Lula) representou como emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes e ministros”.

E em observação indiscutível adverte os que protestam contra a prisão de Lula de não levar em consideração o fato jamais “ocorrido na história da América Latina: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais que, partindo de São Paulo, se estendeu depois por todo o país, não contra uma empresa, um político, mas contra a desonestidade, a enganação, os roubos, as propinas, toda a enorme corrupção que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a atividade política, em todo o país”.

O Nobel não teria motivos para comprometer sua relevância exponencial na literatura contemporânea e resvalar para a margem suspeita e perigosa dos falsos elogios. Não deixou por menos e se referiu ao movimento plural de juízes e promotores como Sergio Moro, que “encorajados por essa mobilização lhe deram uma via judicial, denunciando, enviando à prisão diversos executivos, comerciantes, industriais, políticos, autoridades, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é realizável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo se existe a vontade e o apoio popular para isso”.

O exemplo de firmeza do juiz Sergio Moro é saudado pelo escritor peruano como um comportamento reproduzido nesses últimos anos “por incontáveis juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e na liberdade que quase havia perdido”.

Llosa é categórico ao admitir que se precisasse indicar um brasileiro como exemplo para o restante do planeta “não hesitaria um segundo em eleger Sergio Moro, esse modesto advogado natural do Paraná que, após se formar em advocacia, entrou na magistratura em 1996”, transformando-se pouco depois no destemido cruzado na luta contra a corrupção, inspirada em juízes italianos que se destacaram na Operação Mãos Limpas.

Houve tentativas de intimidar e até corromper o juiz Sergio Moro que anda acompanhado por seguranças, levando o escritor a reputar como milagre o fato do magistrado ainda estar vivo num país “onde os assassinatos políticos infelizmente não são uma exceção”.

Iniciei lembrando que o ex-presidente – pelo menos em determinadas circunstâncias – não sentiu o menor pudor em comparar-se a Getúlio Vargas, ditador de 1930 a 1945 e presidente constitucional de 1950 a 1954, quando um tiro no coração interrompeu sua carreira política e lhe assegurou um lugar na história.

Ao ser forçado a deixar o poder em 1945, Getúlio refugiou-se na fazenda de sua propriedade no município gaúcho de São Borja. O candidato à presidência que contou com o apoio do ex-ditador foi eleito – o marechal Eurico Gaspar Dutra – um dos comandantes da FEB na Itália.

Bafejado nos anos de recolhimento em São Borja por políticos e empresários, Getúlio deixou-se levar pelo entusiasmo calculado dos bajuladores e concordou, mesmo sem mostrar maior interesse, com a organização da campanha vitoriosa ao Palácio do Catete, sede do governo federal no Rio de Janeiro.

Ao contrário, Lula está na cadeia, embora o PT insista em manter-lhe a candidatura à presidência na eleição de outubro. A primeira pesquisa Datafolha feita após a prisão mostra que ele ainda é o primeiro na intenção de voto da população e, em caso de segundo turno, ganharia em qualquer cenário.

Getúlio teve papel preponderante na eleição de Dutra em 1945, mas o mesmo é de difícil prognóstico quanto a Lula e seu partido, tendo em vista o carimbo de ficha suja que certamente será invocado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) quando o registro da candidatura for apresentado, além da dificuldade natural de encontrar um substituto capaz de remontar a estrutura carcomida do PT. Os dois nomes de maior evidência, o ex-governador Jacques Wagner e o ex-prefeito Fernando Hadad amargam as últimas posições na pesquisa.

O chamado “pai dos pobres” voltou ao poder, quatro anos depois, eleito pelo PTB com o apoio aberto do PSD, que de quebra desconheceu a candidatura própria do mineiro Cristiano Machado, traindo-o de forma abjeta. A leitura atenta da crônica política da época não consegue identificar a mínima referência a dom Sebastião, o rei de Portugal morto em batalha contra os mouros.

O sociólogo José de Souza Martins que resgatou o significado místico do sebastianismo atribuindo-o à saga lulista teve, é bom lembrar, o cuidado de restringir a aplicação à evidente teatralidade da “coalizão de alternativa de missa, comício e manifestação popular”.

O perigo não está em acordar dom Sebastião de seu sono milenar, mas de insuflar sobrevida às alianças espúrias entre o público e o privado para continuar drenando os recursos do erário, o que levaria o Brasil ao caos definitivo.

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