15:23‘É cachaça’

por Ascânio Seleme

A senadora Gleisi Hoffmann se aproxima de Lula, estica seu pescoço para chegar mais perto, e cheira o líder que discursava para a massa de militantes horas antes de se entregar à polícia para cumprir sua pena de 12 anos de cadeia. Gleisi volta para o seu lugar e diz para Dilma “é cachaça”. Dilma dissimula, faz de conta que não é com ela e entabula uma conversa com Manuela. Segundos antes, Dilma passa por Gleisi e cochicha alguma coisa. Deve ter dito que Lula cheirava à bebida. E Gleisi foi conferir. Esta cena mostra muito bem como todos os envolvidos nela são humanos, mais que humanos, são gente simples que reage a situações especiais da vida com naturalidade.

Outra cena deste mesmo comício mostra um momento de cuidado e ternura que humaniza ainda mais episódio. Lula bebe golinhos pequenos de uma garrafa de água de plástico. Manuela, ao lado do líder, conversa com ele, impossível saber o que falam. Mas ela olha para a garrafa, faz gestos com a mão, e quando um ajudante se aproxima para tirá-la de Lula, Manuela tenta ajudar. Lula reage, segura a garrafa, fala alguma coisa, dá mais um golinho e por fim solta a garrafa. Nada mais natural e humano. Quem não tomaria sua bebida preferida momentos antes de começar a cumprir uma pena de 12 anos?

Lula se comportou da maneira natural, como que se esperava. Ele vinha de mais de 30 horas de tensão, mal acomodado que estava, dormindo duas noites numa sala do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, tinha que, em algum momento, relaxar. O curioso é que Lula escolheu dar aqueles golinhos pouco antes de fazer um dos mais importantes discursos da sua vida. Não o melhor, até porque foi apenas uma versão dos últimos que proferira. Mas o que ficaria para a História.

O fato é que Lula sabia o que estava fazendo. Ele se conhece bem. Sabia o quanto aguentaria, e que não seriam uns goles a mais ou a menos que o impediriam de falar em seguida. Na época em que trabalhava como torneiro mecânico na mesma São Bernardo, Lula e seus amigos bebiam sempre nos intervalos de turnos, na hora do almoço. Bebiam e algumas vezes jogavam uma peladinha antes de voltar ao batente. Ele próprio um dia contou esta história, rindo, dizendo que os amigos voltavam para o trabalho encharcados de suor dentro de seus macacões.

Mais tarde, depois que estas duas cenas foram destacadas e circularam nas redes, Manuela deu entrevista dizendo que Lula não bebeu antes de discursar. Gleisi não disse nada, menos ainda Dilma. As imagens não deixam muita dúvida, apesar do carinho de Manuela querendo proteger Lula. Mas a deputada concordou que, fosse ela quem estivesse na iminência de ser presa, também tomaria cachaça. Enfim, o que importa em todo o episódio é que, ao contrário do que quis fazer crer, Lula é um ser humano cercado por seus fantasmas, suas angústias, suas alegrias e seus prazeres.

Houve uma época em que Lula se dedicava com mais afinco aos prazeres da vida. Foi quando tentou expulsar do Brasil o correspondente do “New York Times”, Larry Rohter, que publicou no jornal notícia de que “o hábito de bebericar do presidente” estava virando preocupação nacional. Rohter errou, porque os goles de Lula não preocupavam ninguém, mas também acertou, porque aquele era mesmo um hábito de Lula. Como de resto, de uma grande parcela da população adulta brasileira. E até onde se saiba, beber nunca atrapalhou Lula de governar.

No discurso que fez depois daqueles golinhos, ao dizer que já não era mais um ser humano, acrescentou que virou uma ideia. Talvez uma boa ideia, mas com certeza um ser humano igualzinho a todos os outros, como suas fraquezas e fortalezas. Tentou-se criar um mito em torno do homem que resistia à ordem de prisão, que era carregado nos ombros pela aguerrida militância. O que se viu foi um condenado por corrupção se agarrando nos últimos fios de esperança que havia, e tomando uns goles para acreditar que aqueles fios poderiam resistir ao peso da sua culpa. Não resistiram.

Lula é um dos protagonistas mais importantes que a nação já construiu. E o que mais o difere de outros grandes líderes que transitaram pelas páginas da nossa história é exatamente o fato de ser mais comum que os demais. Embora seja uma metamorfose ambulante, como ele mesmo se definiu, complexo e contraditório, Lula é um homem mais raiz que os seus antecessores. Por isso, talvez, tenha sido capaz de beber cachaça na frente de milhares de pessoas fingindo estar tomando água.

Ascânio Seleme é jornalista, ex-direter de redação

*Publicado no jornal O Globo

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