6:47CRUZ MACHADO

por José Maria Correia

Plúmbeas nuvens curitibanas, tão conhecidas da cidade que teima em ocultar o sol.

Na madrugada deserta, entre os colchões e os trapos estendidos nas calçadas coloniais, sobrevivem nas esquinas apenas as jovens prostitutas.

Na mais antiga das profissões, sentadas no meio-fio, aguardam que suas ofertas sejam aceitas na bolsa de liquidações da noite que se finda.

Dali, se surgir algum freguês, seguem para o quarto ordinário de hotel, para o desamor e o teatro dos gemidos de gozo e do horror disfarçado.

As mais antigas e já aposentadas ainda lembram dos hotéis onde perderam a juventude, o Cruzeiro ao lado da antiga estação ferroviária, onde buscavam os clientes abonados chegando de trem do interior,

O Carioca, mais moderninho até no nome, nas proximidades da Marechal Floriano, e os outros da velha zona da Rua Barão do Rio Branco, entre os clássicos casarões.

Tudo ainda antes da época dos primeiros motéis, do 007 do empresário Cobrinha, lá para os lados do aeroporto, onde já estavam as boates Boneca do Iguaçu e a Águas Belas.

Depois surgiu a nova avenida Cruz Machado, reduto das boates-espeluncas, do edifício treme-treme São Paulo, zona e monopólio do anão chamado Montanha.

No início da rua estavam as mais sofisticadas, com as mulheres mais bonitas como o Lidô e o Metrô, onde reinava o maitre Lacerda.

E é entre as luzes de neon desses velhos bordéis decadentes e bares que se abrigam hoje os últimos bêbados e alguns boêmios da antiga guarda, circulando entre os históricos restaurantes, o Bife Sujo outrora reduto da intelectualidade da esquerda e o musical Gato Preto, na Ermelino de Leão onde, reza a lenda, cantou até Júlio Iglesias em uma noitada quando fugia do tédio e do luxo do Hotel Bourbon para degustar a melhor costela da cidade, segundo a turma da boêmia.

Não só Julio Iglesias mas também o cineasta Francis Ford Copolla, igualmente hospedado no Hotel Bourbon, andou caminhando pelas ruas do antigo quadrilátero do pecado, onde conheceu desalentado as fachadas dos antigos cinemas Lido e Condor, hoje sucateados como cines de filmes pornôs e estacionamentos que nada tem a ver com o esplendor das grandes produções que eram exibidas nas telonas da antiga Cinelândia, a região dos cinemas das famílias curitibana.

Claro, havia ainda outros bares como o Kapelle e o Old Friend, que nada tinham a ver com prostituição na Rua Saldanha Marinho, e que marcaram época com estilos diferentes, mais para pubs e com uma frequência bem distinta.

Mas é também nesse quadrilátero de perdições e ilusões que agora,ao cair da noite, surgem das sombras os travestis como bruxas de pano, debruçadas sobre a janela dos automóveis de luxo de senhores levemente embriagados a desafiar suas vocações de vidas familiares, de tédio e desencanto. Do que foram, diante do que queriam ou imaginavam ser.

No submundo da madrugada todos os gatos são pardos e as angústias etílicas reúnem traficantes e fregueses jogadores, vigaristas, putas e gigolôs num contumaz sincretismo e estranha comunhão nos bilhares notívagos.

Já não há mais os gigolôs cavalheiros como o sedutor Getúlio, physique du rôle de ator de cinema e que, dizem, ser o autor da maior das façanhas nesse mundo de conquistas de interesses quando teria corneado o expoente dos representantes da classe internacional dos gigôlos, Porfirio Rubirosa, de quem teria tomado em uma aposta de jogo de pôquer uma dama caribenha, viúva de um produtor de rum em escala mundial.

Ver Getúlio dançar um tango ou um bolero era algo inesquecível, com mais arte, finesse, elegância e dramaticidade que qualquer grande intérprete, como Al Pacino por exemplo em seus melhores filmes.

Muitos casamentos foram desfeitos quando damas da alta sociedade curitibana, habitués das colunas sociais de Calil Simão e Edy Franciosi, abandonaram seus casamentos celebrados com grande pompa nas igrejas mais tradicionais da cidade.

Largavam tudo, marido e filhos, sonhando em viver romances tórridos para sempre com Getúlio Gigolô.

Getúlio era um mestre na arte do sexo, com um vigor incomparável e que, segundo se comentava, muito bem-dotado, levava as mulheres à orgasmos inimagináveis.

Não só isso, também era gentleman, um amante à moda antiga e bem-educado e aceito nas altas rodas por sua origem de barões do café paulistanos.

Para os mais íntimos, Getúlio revelava que se tornara un homme a femme como uma forma de compensação pela mãe ter abandonado o pai ainda jovem, o que o tornara inseguro em relação as mulheres que não parava de conquistar e acumular, porém em relacionamentos fugazes.

Por esse motivo duvidoso ou por outros, o fato é que com o dandy nenhuma relação durava mais tempo que o gasto com os bens das mulheres que explorava e que eram dispendidos rapidamente em viagens internacionais, navios de cruzeiro, hospedagens no Copacabana Palace, ternos ingleses das melhores alfaiatarias e as constantes apostas nas corridas de cavalos, o ponto fraco de Getúlio que deixou fortunas nos guichês dos prados em todo o Brasil e no exterior.

Aliás, Getúlio não perdia nenhum Grande Prêmio Arco de Triunfo no hipódromo de Longchamp em Paris, aquele que foi inaugurado por Napoleão.

Sem cerimônia e já conhecido no mundo turfístico, chegava com grande pompa na comitiva de jovens milionários e acompanhado de belas mulheres para ocupar lugar de destaque nos camarotes onde se misturava com a nobreza europeia e milionários árabes.

Getúlio não deixava por menos e se alguma socialite ingressava no seu mundo de aventuras turfísticas e nos cassinos, seguramente era nesses ambientes que deixaria sua meação do casamento desfeito.

Um dos amigos mais fiéis e companheiros de noitadas de Getúlio era o Barão de Latorraca

Nas madrugadas atuais, da crise e da pobreza, jamais seria possível encontrar hoje uma personagem como este Barão, alguém que viveu nos anos dourados e cujo título inventou para aplicar seus golpes de vendas de ativos imobiliários e ações de estatais que nunca existiram.

Latorraca vendia suas fantasias e aplicava seus golpes com tanta simpatia e doçura, prometendo ganhos incalculáveis para as suas vítimas, que essas mesmo depois de sofrerem o prejuízo continuavam ainda a acreditar no Barão que se apresentava como também lesado e ainda conseguia algum emprestado para sobreviver.

Acompanhar Getúlio gigolô não era barato e o Barão não abria mão de residir no Grande Hotel Moderno, na clássica rua Quinze de Novembro, onde ocupou uma suíte e fez suas refeições por mais de uma década sem jamais ter pago uma única diária.

Nas eventuais visitas de membros da família imperial ao Paraná, lá estava o Barão a receber os príncipes exibindo suas comendas adquiridas no Vaticano, na Ilha de Malta ou em outro país qualquer onde houvesse comércio dessas supostas honrarias e títulos tão ao gosto da burguesia.

Ainda sem esses personagens fascinantes, sem seus poetas e músicos como o saudoso Lápis e Tatara, hoje beirando os setenta anos, ou mesmo o Fernandinho do Bumbo para arrumar alguma confusão, a noite sobrevive.

Pobremente,é verdade, e fora do circuito das baladas dos jovens e dos bares da moda, mas sobrevive.

Com o fechamento das grandes casas noturnas como o Stardust, não é mais possível encontrar nos bares da madrugada, como o Luís da revigorante canja, as strippers com a beleza e o carisma de Stela, que de trapezista no circo de Orlando Orfei, descoberta pelo sempre ativo Getúlio Gigolô, foi trabalhar na boite da Praça Osório onde ganhou o prêmio Roquete Pinto da noite com o papel da cigana Esmeralda na representação do Corcunda de Notre Dame.

Estela enlouquecia a casa com sua dança frenética em volta do monstro tocando o pandeiro imaginado por Victor Hugo – e se desnudando com os 14 véus de seda que cobriam o mais belo corpo já visto naquela época.

De tudo isso restou muito pouco. Confesso que em algumas madrugadas, e já nos meus setenta anos, na nostalgia dos anos 60, percorro as noites como um romeiro de lugares perdidos, cheios de romances, de pecados, de histórias e de muitas saudades.

E parado na frente dos velhos casarões degradados e abandonados fecho os olhos e ainda consigo escutar ao longe e no passado os metais da orquestra do Genésio, o pandeiro de Estela, a voz ao fundo do apresentador portenho da Star anunciando a próxima atração: “ Senhores esta es uma casa de respeto, aplaudam la sensacional stripper”.

Tudo que vejo são apenas miragens, sonhos e lembranças que logo se desfazem na garoa intermitente que cai na calçada como em um filme noir.

Nada mais que ecos perdidos das noites que já amanheceram há muito tempo.

De vez em quando passo no cemitério municipal para relembrar meus mortos imortais e invariavelmente encontro, sobre um jazigo de granito, onde há uma fotografia amarelecida, a imagem de um belo homem, uma rosa ou um cravo amarelo.

O mesmo que Getúlio usava na lapela de seus ternos bem cortados enquanto rodopiava nas pistas dos salões curitibanos sob os aplausos de tantos admiradores.

E a vida prossegue agora com outros personagens, sem o glamour de outrora nos quartos dos encontros dos hotéis anônimos.

É nesses pardieiros vulgares, e enquanto nos rádios nas cabeceiras humildes rola um tango ou um bolero, que às vezes se escuta entre as paredes finas um choro de desespero, de angústia existencial trazida pela noite.

De tristeza profunda e de desesperança, de viver tragicamente e solitário.

Um sentimento lúgubre e estranho de falta de pertencimento que cria a necessidade de que corpos se entrelacem – e que só a essa gente da noite costuma acometer.

Até que o dia amanheça.

Compartilhe

4 ideias sobre “CRUZ MACHADO

  1. Célio Heitor Guimarães

    Grande Zé Maria! Um abraço saudoso deste antigo caminhador noturno da Curitiba que não existe mais.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.